Ricardo Balthazar, Valor Econômico
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou para os Estados Unidos no início de 2005 que estava disposto a usar sua influência na América Latina para exercer um papel de moderador na região, oferecendo ajuda para conter as ambições do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as tensões sociais que começavam a se manifestar na Bolívia.
A mensagem de Lula foi transmitida pelo então ministro da Casa Civil, José Dirceu, ao final de um longo encontro que ele teve com a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, no dia 3 de março daquele ano, em Washington. Um resumo da conversa foi feito dias depois num informe enviado à embaixada americana no Brasil, do qual o Valor obteve uma cópia.
Condoleezza introduziu o assunto dizendo a Dirceu que o Brasil precisava mandar uma "mensagem clara" para Chávez. Dirceu respondeu afirmando que Lula já aconselhara o líder venezuelano a moderar sua retórica, avisando Chávez que ele estava "brincando com uma arma carregada", segundo o informe.
Dirceu acrescentou que o Brasil não acreditava que Chávez desse qualquer tipo de ajuda aos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), ao contrário do que os americanos sempre desconfiaram. Quanto à Bolívia, onde o líder cocaleiro Evo Morales se preparava para lançar sua candidatura presidencial, Dirceu garantiu à secretária que o Brasil tinha a situação "sob controle".
O informe sobre a conversa de Condoleezza com Dirceu faz parte de um conjunto de documentos internos do governo americano aos quais o Valor teve acesso nos últimos meses, depois de apresentar vários requerimentos amparados numa lei que permite a liberação de papéis desse tipo, a Lei de Liberdade de Informação (Foia, na sigla em inglês).
Os documentos abrem uma fresta que ajuda a entender a evolução das relações do Brasil com os Estados Unidos e seus vizinhos nos primeiros anos após a chegada de Lula ao poder. Eles mostram que o presidente cortejou o apoio dos americanos desde o começo, apresentando-se como um parceiro confiável, que podia ajudá-los a manter a estabilidade na América Latina.
De acordo com os papéis examinados pelo Valor, o próprio Lula deixou isso claro em pelo menos uma oportunidade, numa conversa que teve em junho de 2004 com o então secretário do Tesouro dos EUA John Snow, em Nova York, onde o presidente se encontrava para uma série de contatos com investidores.
Segundo um memorando do Departamento do Tesouro, Lula disse a Snow que o Brasil estava executando a "política externa mais agressiva de sua história" e que planejava usar o bom relacionamento que tinha com outros líderes da América Latina como "uma força pela estabilidade e pela democracia na região".
Lula disse ao secretário do Tesouro que as "democracias relativamente novas e frágeis" da região enfrentavam grandes desafios e precisavam de ajuda. Lula aproveitou a oportunidade e pediu uma mão para o Equador. Ele disse a Snow que o governo do país vizinho sentia-se "acossado" pela oposição e precisava de "tratamento especial" do Fundo Monetário Internacional (FMI) para recuperar sua economia.
Os documentos também mostram que Lula começou a imprimir um tom amistoso ao relacionamento com os americanos logo que desceu do palanque. Em 30 de outubro de 2002, três dias depois da sua consagração no segundo turno das eleições, ele chamou a então embaixadora dos EUA no Brasil Donna Hrinak para uma conversa no comitê central da sua campanha.
Segundo o relato enviado para Washington no dia seguinte, Lula parecia preocupado com as pressões que começava a sofrer do partido e de outros setores, mas garantiu a Donna que não haveria "nenhuma surpresa" em seu governo e que ele não teria perfil "ideológico". "Não vou ser um desses líderes que pensa que tem todas as respostas e precisa tomar todas as decisões", disse o presidente eleito à embaixadora.
Lula fez questão de estabelecer diferenças entre ele e outros líderes latino-americanos. Ao discutir a situação política em Cuba e sua amizade com Fidel Castro, pediu a Donna que não interpretasse seu apreço pessoal pelo dirigente comunista como um sinal de aprovação ao regime cubano e admitiu "que não havia liberdade em Cuba hoje".
Conquistar a boa vontade dos americanos era crucial para o novo presidente naquela altura. "Sabíamos que íamos enfrentar uma situação muito difícil no primeiro ano de governo e manter uma relação normal com os Estados Unidos era muito importante", disse Dirceu ao Valor, numa entrevista recente. "Abrir uma frente externa que se transformasse num problema era a última coisa que precisávamos."
As eleições brasileiras de 2002 foram acompanhadas com ansiedade em Washington, num momento em que a América Latina parecia ter voltado a ser um foco de instabilidade. A Argentina mergulhara numa profunda crise política e econômica com o fim do regime de câmbio fixo no país. Na Venezuela, Chávez estava em guerra com a oposição, que em abril tentara tirá-lo à força do poder e fracassara.
Nos dois casos as ações do governo americano contribuíram para esfriar seu relacionamento com a região. Os EUA foram o primeiro país a reconhecer como legítimo o governo provisório instalado na Venezuela após o golpe de abril, que durou menos de 48 horas. E os americanos levaram vários meses para aprovar um pacote de socorro financeiro do FMI para a Argentina.
A ascensão de líderes esquerdistas como Lula e Chávez assustava a direita americana. Dias antes do segundo turno no Brasil, um grupo de 27 congressistas do Partido Republicano mandou uma carta ao presidente George W. Bush para dizer que um novo "eixo do mal", constituído por Lula, Chávez e Fidel, representaria uma ameaça séria para a segurança dos EUA.
Ocupado com a guerra no Afeganistão e os preparativos para a invasão do Iraque, Bush não tinha tempo para prestar atenção na vizinhança. Mas o seu homem na região, o secretário-assistente de Estado para a América Latina, Otto Reich, um cubano-americano que no passado ajudara a combater os sandinistas na Nicarágua, estava bem preocupado com o que via.
Ele viajou para o Brasil em julho para tomar pé da situação. "Algumas pessoas vieram nos dizer que não podíamos deixar Lula virar presidente", disse Reich ao Valor. "Havia também alguns brasileiros nos dizendo que ele seria perigoso", acrescentou. "Mas não havia o que fazer e tomamos a decisão consciente de que não iríamos nos envolver."
As desconfianças que os americanos tinham de Lula foram eliminadas aos poucos. Dirceu foi a Washington e Nova York para manter contatos com investidores e autoridades em julho. Donna, que conhecera Dirceu e outros dirigentes petistas na década de 80 e tinha profunda admiração pessoal por Lula, ajudou a desanuviar o ambiente mostrando a Washington que não havia por que temer Lula.
Reich só começou a se convencer disso quando as urnas já estavam fechadas. Em novembro de 2002, ele encontrou-se com Lula em Brasília e passou quase três horas reunido com três de seus principais colaboradores, Dirceu, o futuro ministro Antonio Palocci, que na época coordenava a equipe de transição do novo governo, e o senador Aloizio Mercadante. "Foi ali que percebi que dava para trabalhar com eles", disse Reich ao Valor.
A conversa preparou terreno para um encontro que Lula teve com Bush na Casa Branca três semanas antes de tomar posse. De acordo com uma mensagem que Washington mandou mais tarde para suas embaixadas, Reich resumiu suas impressões pouco dias depois num encontro reservado com empresários no Chile. Ele continuava preocupado com a situação na Venezuela e achava que faltava "vontade política" para a Argentina sair da crise, mas estava "otimista" com Lula.
A aliança que Lula e os EUA começaram a construir naquele momento era conveniente para os dois lados. Lula queria o apoio americano para convencer os investidores de que estava falando sério quando prometia honrar as dívidas do país e conduzir a economia de maneira responsável. Para Bush, era importante ter um aliado no Brasil num momento em que o antiamericanismo crescia na região.
Diplomacia americana recorreu a Dirceu
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou para os Estados Unidos no início de 2005 que estava disposto a usar sua influência na América Latina para exercer um papel de moderador na região, oferecendo ajuda para conter as ambições do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as tensões sociais que começavam a se manifestar na Bolívia.
A mensagem de Lula foi transmitida pelo então ministro da Casa Civil, José Dirceu, ao final de um longo encontro que ele teve com a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, no dia 3 de março daquele ano, em Washington. Um resumo da conversa foi feito dias depois num informe enviado à embaixada americana no Brasil, do qual o Valor obteve uma cópia.
Condoleezza introduziu o assunto dizendo a Dirceu que o Brasil precisava mandar uma "mensagem clara" para Chávez. Dirceu respondeu afirmando que Lula já aconselhara o líder venezuelano a moderar sua retórica, avisando Chávez que ele estava "brincando com uma arma carregada", segundo o informe.
Dirceu acrescentou que o Brasil não acreditava que Chávez desse qualquer tipo de ajuda aos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), ao contrário do que os americanos sempre desconfiaram. Quanto à Bolívia, onde o líder cocaleiro Evo Morales se preparava para lançar sua candidatura presidencial, Dirceu garantiu à secretária que o Brasil tinha a situação "sob controle".
O informe sobre a conversa de Condoleezza com Dirceu faz parte de um conjunto de documentos internos do governo americano aos quais o Valor teve acesso nos últimos meses, depois de apresentar vários requerimentos amparados numa lei que permite a liberação de papéis desse tipo, a Lei de Liberdade de Informação (Foia, na sigla em inglês).
Os documentos abrem uma fresta que ajuda a entender a evolução das relações do Brasil com os Estados Unidos e seus vizinhos nos primeiros anos após a chegada de Lula ao poder. Eles mostram que o presidente cortejou o apoio dos americanos desde o começo, apresentando-se como um parceiro confiável, que podia ajudá-los a manter a estabilidade na América Latina.
De acordo com os papéis examinados pelo Valor, o próprio Lula deixou isso claro em pelo menos uma oportunidade, numa conversa que teve em junho de 2004 com o então secretário do Tesouro dos EUA John Snow, em Nova York, onde o presidente se encontrava para uma série de contatos com investidores.
Segundo um memorando do Departamento do Tesouro, Lula disse a Snow que o Brasil estava executando a "política externa mais agressiva de sua história" e que planejava usar o bom relacionamento que tinha com outros líderes da América Latina como "uma força pela estabilidade e pela democracia na região".
Lula disse ao secretário do Tesouro que as "democracias relativamente novas e frágeis" da região enfrentavam grandes desafios e precisavam de ajuda. Lula aproveitou a oportunidade e pediu uma mão para o Equador. Ele disse a Snow que o governo do país vizinho sentia-se "acossado" pela oposição e precisava de "tratamento especial" do Fundo Monetário Internacional (FMI) para recuperar sua economia.
Os documentos também mostram que Lula começou a imprimir um tom amistoso ao relacionamento com os americanos logo que desceu do palanque. Em 30 de outubro de 2002, três dias depois da sua consagração no segundo turno das eleições, ele chamou a então embaixadora dos EUA no Brasil Donna Hrinak para uma conversa no comitê central da sua campanha.
Segundo o relato enviado para Washington no dia seguinte, Lula parecia preocupado com as pressões que começava a sofrer do partido e de outros setores, mas garantiu a Donna que não haveria "nenhuma surpresa" em seu governo e que ele não teria perfil "ideológico". "Não vou ser um desses líderes que pensa que tem todas as respostas e precisa tomar todas as decisões", disse o presidente eleito à embaixadora.
Lula fez questão de estabelecer diferenças entre ele e outros líderes latino-americanos. Ao discutir a situação política em Cuba e sua amizade com Fidel Castro, pediu a Donna que não interpretasse seu apreço pessoal pelo dirigente comunista como um sinal de aprovação ao regime cubano e admitiu "que não havia liberdade em Cuba hoje".
Conquistar a boa vontade dos americanos era crucial para o novo presidente naquela altura. "Sabíamos que íamos enfrentar uma situação muito difícil no primeiro ano de governo e manter uma relação normal com os Estados Unidos era muito importante", disse Dirceu ao Valor, numa entrevista recente. "Abrir uma frente externa que se transformasse num problema era a última coisa que precisávamos."
As eleições brasileiras de 2002 foram acompanhadas com ansiedade em Washington, num momento em que a América Latina parecia ter voltado a ser um foco de instabilidade. A Argentina mergulhara numa profunda crise política e econômica com o fim do regime de câmbio fixo no país. Na Venezuela, Chávez estava em guerra com a oposição, que em abril tentara tirá-lo à força do poder e fracassara.
Nos dois casos as ações do governo americano contribuíram para esfriar seu relacionamento com a região. Os EUA foram o primeiro país a reconhecer como legítimo o governo provisório instalado na Venezuela após o golpe de abril, que durou menos de 48 horas. E os americanos levaram vários meses para aprovar um pacote de socorro financeiro do FMI para a Argentina.
A ascensão de líderes esquerdistas como Lula e Chávez assustava a direita americana. Dias antes do segundo turno no Brasil, um grupo de 27 congressistas do Partido Republicano mandou uma carta ao presidente George W. Bush para dizer que um novo "eixo do mal", constituído por Lula, Chávez e Fidel, representaria uma ameaça séria para a segurança dos EUA.
Ocupado com a guerra no Afeganistão e os preparativos para a invasão do Iraque, Bush não tinha tempo para prestar atenção na vizinhança. Mas o seu homem na região, o secretário-assistente de Estado para a América Latina, Otto Reich, um cubano-americano que no passado ajudara a combater os sandinistas na Nicarágua, estava bem preocupado com o que via.
Ele viajou para o Brasil em julho para tomar pé da situação. "Algumas pessoas vieram nos dizer que não podíamos deixar Lula virar presidente", disse Reich ao Valor. "Havia também alguns brasileiros nos dizendo que ele seria perigoso", acrescentou. "Mas não havia o que fazer e tomamos a decisão consciente de que não iríamos nos envolver."
As desconfianças que os americanos tinham de Lula foram eliminadas aos poucos. Dirceu foi a Washington e Nova York para manter contatos com investidores e autoridades em julho. Donna, que conhecera Dirceu e outros dirigentes petistas na década de 80 e tinha profunda admiração pessoal por Lula, ajudou a desanuviar o ambiente mostrando a Washington que não havia por que temer Lula.
Reich só começou a se convencer disso quando as urnas já estavam fechadas. Em novembro de 2002, ele encontrou-se com Lula em Brasília e passou quase três horas reunido com três de seus principais colaboradores, Dirceu, o futuro ministro Antonio Palocci, que na época coordenava a equipe de transição do novo governo, e o senador Aloizio Mercadante. "Foi ali que percebi que dava para trabalhar com eles", disse Reich ao Valor.
A conversa preparou terreno para um encontro que Lula teve com Bush na Casa Branca três semanas antes de tomar posse. De acordo com uma mensagem que Washington mandou mais tarde para suas embaixadas, Reich resumiu suas impressões pouco dias depois num encontro reservado com empresários no Chile. Ele continuava preocupado com a situação na Venezuela e achava que faltava "vontade política" para a Argentina sair da crise, mas estava "otimista" com Lula.
A aliança que Lula e os EUA começaram a construir naquele momento era conveniente para os dois lados. Lula queria o apoio americano para convencer os investidores de que estava falando sério quando prometia honrar as dívidas do país e conduzir a economia de maneira responsável. Para Bush, era importante ter um aliado no Brasil num momento em que o antiamericanismo crescia na região.
Diplomacia americana recorreu a Dirceu
para driblar resistências do Itamaraty
De Washington
Valor Econômico
O ex-ministro José Dirceu virou um interlocutor privilegiado do governo americano no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando os Estados Unidos buscaram um canal paralelo de diálogo com o círculo íntimo do presidente para driblar resistências que encontraram na diplomacia brasileira a uma aproximação maior dos dois países.
"O Itamaraty via a relação com Washington como um jogo de soma zero, em que um lado só ganha se o outro perder", disse ao Valor o ex-secretário-assistente de Estado dos EUA para a América Latina Roger Noriega, que ocupou o posto de 2003 a 2005. "Era importante ter um canal que passasse por cima disso e achávamos que Dirceu podia ser um interlocutor prático."
O ex-ministro desempenhou o papel com grande desenvoltura. Em 2005, semanas depois de se reunir em Washington com a secretária Condoleezza Rice, ele viajou às pressas para Caracas para falar com o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Dirceu voltou correndo para contar o que ouvira a Condoleezza, que encontrou novamente durante uma visita de dois dias que ela fez a Brasília na mesma época.
"O sentido da [nossa] mensagem era que o Brasil, que os Estados Unidos não deviam interferir nem na Venezuela, nem na Bolívia", disse Dirceu ao Valor, oferecendo uma versão diferente da que foi registrada no informe sobre sua conversa com Condoleezza. "A situação da Bolívia, não é que estava sob nosso controle. Estava sob controle. Não havia nada na Bolívia que pudesse ameaçar qualquer interesse."
O ex-ministro diz que não foi a Caracas levar recados dos EUA nem transmitiu mensagens de Chávez para Condoleezza na volta. Mas uma pessoa que foi informada sobre as conversas de Dirceu na época disse ao Valor que ele indicou a Condoleezza em Brasília que o presidente venezuelano manifestara interesse numa reaproximação com os americanos, exatamente o contrário do que aconteceu depois.
As relações da Venezuela com os EUA se deterioraram ainda mais nos meses seguintes. Em novembro de 2005, sete meses depois das conversas de Dirceu com Condoleezza, Chávez foi a um estádio lotado de manifestantes discursar contra o presidente George W. Bush, ao final de um encontro de líderes regionais em Mar del Plata, na Argentina. No dia seguinte, Lula recebeu Bush em Brasília com manifestações efusivas de simpatia.
A movimentação de Dirceu causou incômodo no Itamaraty na época. No seu encontro com Condoleezza em Washington, quando ela quis saber sua opinião sobre a situação na Venezuela, Dirceu sugeriu que o assunto fosse discutido no fim da reunião, quando os dois ficaram a sós por alguns minutos sem que os diplomatas que o acompanhavam pudessem ouvi-los.
Mas não parecia haver diferenças significativas entre Dirceu e o Itamaraty. Semanas depois, quando Condoleezza foi ao Brasil, ela ouviu do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, uma mensagem semelhante à de Dirceu. Perguntado sobre a Bolívia, Amorim disse que o Brasil levaria Evo Morales ao caminho da moderação, de acordo com uma pessoa que na época recebeu um relato da conversa.
O canal paralelo que os EUA estabeleceram com Dirceu perdeu importância com o tempo. Dirceu saiu do governo em junho de 2005, por causa do seu envolvimento no escândalo do mensalão. Noriega deixou o Departamento de Estado quatro meses depois e Condoleezza substituiu a linha-dura republicana por diplomatas de carreira, que estabeleceram relações mais amistosas com o Itamaraty. Bush e Lula passaram a se entender tão bem nos anos seguintes que intermediários como Dirceu tornaram-se desnecessários. (RB)
Valor Econômico, 6 de maio de 2008
De Washington
Valor Econômico
O ex-ministro José Dirceu virou um interlocutor privilegiado do governo americano no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando os Estados Unidos buscaram um canal paralelo de diálogo com o círculo íntimo do presidente para driblar resistências que encontraram na diplomacia brasileira a uma aproximação maior dos dois países.
"O Itamaraty via a relação com Washington como um jogo de soma zero, em que um lado só ganha se o outro perder", disse ao Valor o ex-secretário-assistente de Estado dos EUA para a América Latina Roger Noriega, que ocupou o posto de 2003 a 2005. "Era importante ter um canal que passasse por cima disso e achávamos que Dirceu podia ser um interlocutor prático."
O ex-ministro desempenhou o papel com grande desenvoltura. Em 2005, semanas depois de se reunir em Washington com a secretária Condoleezza Rice, ele viajou às pressas para Caracas para falar com o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Dirceu voltou correndo para contar o que ouvira a Condoleezza, que encontrou novamente durante uma visita de dois dias que ela fez a Brasília na mesma época.
"O sentido da [nossa] mensagem era que o Brasil, que os Estados Unidos não deviam interferir nem na Venezuela, nem na Bolívia", disse Dirceu ao Valor, oferecendo uma versão diferente da que foi registrada no informe sobre sua conversa com Condoleezza. "A situação da Bolívia, não é que estava sob nosso controle. Estava sob controle. Não havia nada na Bolívia que pudesse ameaçar qualquer interesse."
O ex-ministro diz que não foi a Caracas levar recados dos EUA nem transmitiu mensagens de Chávez para Condoleezza na volta. Mas uma pessoa que foi informada sobre as conversas de Dirceu na época disse ao Valor que ele indicou a Condoleezza em Brasília que o presidente venezuelano manifestara interesse numa reaproximação com os americanos, exatamente o contrário do que aconteceu depois.
As relações da Venezuela com os EUA se deterioraram ainda mais nos meses seguintes. Em novembro de 2005, sete meses depois das conversas de Dirceu com Condoleezza, Chávez foi a um estádio lotado de manifestantes discursar contra o presidente George W. Bush, ao final de um encontro de líderes regionais em Mar del Plata, na Argentina. No dia seguinte, Lula recebeu Bush em Brasília com manifestações efusivas de simpatia.
A movimentação de Dirceu causou incômodo no Itamaraty na época. No seu encontro com Condoleezza em Washington, quando ela quis saber sua opinião sobre a situação na Venezuela, Dirceu sugeriu que o assunto fosse discutido no fim da reunião, quando os dois ficaram a sós por alguns minutos sem que os diplomatas que o acompanhavam pudessem ouvi-los.
Mas não parecia haver diferenças significativas entre Dirceu e o Itamaraty. Semanas depois, quando Condoleezza foi ao Brasil, ela ouviu do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, uma mensagem semelhante à de Dirceu. Perguntado sobre a Bolívia, Amorim disse que o Brasil levaria Evo Morales ao caminho da moderação, de acordo com uma pessoa que na época recebeu um relato da conversa.
O canal paralelo que os EUA estabeleceram com Dirceu perdeu importância com o tempo. Dirceu saiu do governo em junho de 2005, por causa do seu envolvimento no escândalo do mensalão. Noriega deixou o Departamento de Estado quatro meses depois e Condoleezza substituiu a linha-dura republicana por diplomatas de carreira, que estabeleceram relações mais amistosas com o Itamaraty. Bush e Lula passaram a se entender tão bem nos anos seguintes que intermediários como Dirceu tornaram-se desnecessários. (RB)
Valor Econômico, 6 de maio de 2008
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