quarta-feira, 7 de maio de 2008

Documentos mostram como Lula se aproximou dos EUA

Cláudio Dantas Sequeira, Folha de S. Paulo

Telegramas descrevem diálogo com embaixadora e papel do ex-ministro José Dirceu
Registros diplomáticos mostram que preocupação foi enviar mensagem de confiança a investidores e negar possíveis "surpresas"


Documentos liberados pelo governo norte-americano mostram que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva priorizou a relação com os Estados Unidos, desde que foi eleito em outubro de 2002. Os bastidores dessa aproximação com a administração de George W. Bush estão em telegramas diplomáticos divulgados ontem pelo jornal "Valor Econômico".

A primeira preocupação de Lula foi enviar uma mensagem de segurança aos investidores estrangeiros. Depois ele assumiria papel de moderador na América do Sul, buscando amortecer o impacto da retórica antiamericana do presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

Apenas três dias depois de ser eleito, Lula se reuniu com a então embaixadora dos EUA no Brasil, Donna Hrinak. A conversa foi relatada por ela ao Departamento de Estado norte-americano."Lula salientou repetidamente que queria trabalhar com os Estados Unidos, em geral e na Alca", escreveu Hrinak. Ao presidente, ela salientou que seria importante evitar "surpresas desagradáveis", especificamente uma mudança da política econômica herdada de FHC. "Lula imediatamente respondeu que não haveria "nenhuma surpresa". Que não seria "ideológico'", observou a embaixadora.

A chegada de Lula ao poder foi acompanhada então de grande expectativa, num momento em que a região vivia momento de instabilidade. A Argentina enfrentava profunda crise econômica, com suspensão de pagamentos dos credores internacionais. Na Venezuela, Chávez foi vítima de duas tentativas de golpe de Estado -os EUA chegaram a reconhecer um governo provisório- no mesmo ano.

"Enviar uma mensagem de confiança era uma necessidade naquele primeiro ano tão difícil", disse à Folha o ex-embaixador Roberto Abdenur, que serviu em Washington. "Não se tratou de submissão. Lula sempre foi muito lúcido sobre que tipo de relação ter com os EUA", explicou.

Uma fonte do gabinete do chanceler Celso Amorim explicou que a situação era agravada por causa do perfil ultraconservador dos principais assessores do Departamento de Estado americano, à época encabeçado por Colin Powell e hoje por Condoleezza Rice.

Para Abdenur, a desconfiança das autoridades americanas e dos investidores só se dissipou completamente a partir do seminário a empresários no luxuoso hotel Waldorf-Astoria, em junho de 2004.

"O secretário do Tesouro dos EUA, John Snow, se dirigiu a Lula para cumprimentá-lo pelo discurso. No dia seguinte, ele divulgou nota elogiando a política econômica do governo Lula", lembrou Abdenur.Em memorando desclassificado pelo governo americano, Snow relatou detalhes da conversa que teve com o presidente brasileiro. "Lula disse que o Brasil está seguindo a política externa mais agressiva de sua história. Ele quer usar seu bom relacionamento com figuras regionais como uma força pela estabilidade e pela democracia na região", escreveu.

O papel do ex-ministro José Dirceu (Casa Civil) é registrado com destaque nos documentos do governo americano. Dirceu estabeleceu um canal de interlocução privilegiado com Rice, em uma estratégia de Lula para agilizar os contatos.Para a Casa Branca, haveria certa resistência na cúpula do Itamaraty sobre uma relação amistosa com os EUA.

O trabalho de Dirceu se concentrou basicamente em criar laços com investidores estrangeiros e amenizar a tensão nas relações dos EUA com a Venezuela. Em março de 2005, Dirceu se reuniu em privado com a secretária de Estado americana, por cerca de 15 minutos.

Um telegrama registra: "Dirceu afirmou que Lula já tinha aconselhado Chávez sobre a necessidade de ser mais cuidadoso em sua retórica. Ele acrescentou que o Brasil não acredita que Chávez esteja apoiando as Farc".

Folha de S. Paulo, 7 de maio de 2008

Embaixada assegurou aval dos EUA a Lula

Ricardo Balthazar, Valor Econômico

A embaixada dos Estados Unidos em Brasília trabalhou ativamente em 2002 para ajudar Luiz Inácio Lula da Silva a ganhar o apoio do governo americano antes da sua posse, num momento em que esse reconhecimento era considerado crucial para dissipar as desconfianças que o novo presidente despertava nos investidores.

A embaixadora Donna Hrinak expôs seu plano com clareza nas semanas que se seguiram à eleição. Na sua avaliação, Lula sabia que só teria a confiança dos investidores se mantivesse a política econômica de estilo conservador adotada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, mas precisava de ajuda para vencer as resistências que ia enfrentar no seu partido.

Em mensagem enviada a Washington em 27 de novembro, um mês após a eleição, a embaixadora disse que o melhor que os EUA poderiam fazer naquela altura era manifestar apoio a Lula e ter paciência, evitando "prescrições insistentes de fora", que só contribuiriam para minar o esforço que o presidente eleito estava disposto a fazer para "manter na linha os doutrinários do próprio PT".

O relatório de Donna faz parte de um conjunto de documentos liberados pelos EUA nos últimos meses a pedido do Valor. O jornal teve acesso aos papéis após apresentar ao Departamento de Estado e outros órgãos do governo americano vários requerimentos amparados na Lei de Liberdade de Informação (Foia, na sigla em inglês).

Os documentos indicam que o empenho de Donna era um reflexo do que ela estava ouvindo em suas conversas. Nos dias que antecederam a eleição de 2002, os diplomatas que lidavam com assuntos econômicos na embaixada foram tomar o pulso dos seus contatos no setor privado. Para sua surpresa, ninguém achava que o Brasil estivesse à beira de um precipício.

Todos apostavam que Lula agiria rapidamente para tranqüilizar o mercado financeiro, mantendo o PT afastado do comando da economia e indicando para presidir o Banco Central alguém que seria recebido com alívio na praça. "O Brasil não tem nenhuma outra escolha", disse um dos contatos da embaixada, conforme relato enviado em outubro a Washington.

Lula sabia da importância que a simpatia americana teria para sua credibilidade e trabalhou desde cedo para conquistá-la. Ele conversou quatro vezes durante a campanha eleitoral com Donna, que assumiu seu posto em Brasília em abril de 2002. Alguns dos seus principais assessores também tiveram contatos freqüentes com ela.

Numa dessas conversas, Lula indicou a Donna que o BC teria mais autonomia em seu governo do que ele admitia em público. "Não era algo que ele achava possível fazer de imediato, mas ele me disse que achava que o BC devia ser independente", disse Donna, em entrevista ao Valor. "Era uma mensagem muito importante naquele momento para Washington."

Os americanos tornaram explícito o apoio a Lula três semanas antes da sua posse, em 10 de dezembro de 2002, quando ele foi recebido pelo presidente George W. Bush na Casa Branca, um privilégio que normalmente é concedido apenas a chefes de Estado no exercício da função. Na saída, o presidente eleito anunciou que Antonio Palocci seria seu ministro da Fazenda.

Bush manifestou entusiasmo quando Lula explicou como pretendia administrar a economia. Em tom de brincadeira, o presidente dos EUA disse que o plano era tão sensato que parecia uma "boa política republicana", como anotou em suas memórias o então subsecretário do Tesouro americano para assuntos internacionais John Taylor, que participou do encontro com Lula.

A boa vontade da Casa Branca contrastava com a apreensão que Lula ainda despertava em Wall Street. No mesmo dia em que ele falou com Bush, a chegada dos petistas ao poder foi apontada como uma fonte de instabilidade para a economia mundial numa reunião do Federal Reserve, o banco central americano, segundo transcrições divulgadas recentemente.

Havia razões de natureza política para o aval de Bush a Lula. A ascensão de líderes esquerdistas como o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, era considerada uma ameaça para os interesses de Washington na América Latina, e estabelecer uma relação amistosa com os petistas desde o começo podia ser também uma maneira de conservar a influência dos EUA na região.

Outra fonte de preocupações para os americanos nessa época era a Argentina, que fora chacoalhada por uma crise política e econômica avassaladora depois do fim do regime de câmbio fixo. Tudo que eles não queriam era ver no Brasil uma repetição dos problemas que o vizinho tivera. "As coisas logo se arrumaram com Lula após a eleição, e dali para frente só tivemos alegrias", disse Taylor ao Valor.

Os EUA levaram meses para aprovar um pacote de socorro do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a Argentina em 2002. Nos anos seguintes, os argentinos afastaram-se dos americanos e optaram por políticas diferentes do figurino ortodoxo adotado por Lula. Eleito em 2003, o presidente Néstor Kirchner alinhou-se a Chávez e virou um dos seus principais aliados.

Os documentos obtidos pelo Valor sugerem que os petistas procuraram se diferenciar dos vizinhos para manter a credibilidade recém-conquistada. Em outubro de 2005, o ministro Palocci disse ao então subsecretário de Estado dos EUA Robert Zoellick que estava preocupado com o "populismo" na América Latina e citou apenas Brasil, Chile e Uruguai como países que seguiam políticas econômicas responsáveis na vizinhança.

Mas as freqüentes divergências entre os petistas continuaram causando desconforto nos EUA por muito tempo, mesmo quando a economia brasileira parecia ter voltado aos trilhos. Em maio de 2004, pouco antes de deixar seu posto em Brasília e trocar a diplomacia pela iniciativa privada, Donna escreveu num telegrama para Washington que Palocci era uma "exceção" entre os assessores de Lula.

Na sua avaliação, a maioria dos aliados do presidente continuava pressionando-o a assumir um papel mais ativo na economia, criando incômodo para muitas empresas. "Essa inclinação fez proliferar novas barreiras para investidores", disse Donna, citando como exemplos as mudanças promovidas pelo PT nas agências reguladoras e nas concessões do setor elétrico.

O embaixador John Danilovich, que substituiu Donna, teve outras aflições. O escândalo do mensalão deixou Lula acuado e paralisou o governo em 2005. Acusado de sonegação fiscal na mesma época, o presidente do BC, Henrique Meirelles, parecia com os dias contados. Em julho, Danilovich mandou sua equipe tirar a temperatura dos mercados financeiros.

Um dos interlocutores da embaixada afirmou que nada iria mudar, mesmo se Lula fosse afastado da Presidência, Palocci caísse ou Meirelles fosse para casa. Segundo o contato dos americanos, o governo Lula havia demonstrado a existência de "um consenso nacional sobre o que deve ser a política econômica", e qualquer um que viesse depois seria obrigado a fazer tudo igual. Como em 2002, ninguém parecia ter medo de mais nada.

Lula só usa com os amigos a
palavra "cooperar", diz Amorim

Valor Econômico
De Brasília
Provocou constrangimento no Itamaraty a revelação, pelo Valor, de que o governo Lula discutiu com integrantes do governo George W. Bush a "contenção" dos arroubos de presidentes hostis aos EUA, na Bolívia e na Venezuela. "Não comento documentos oficiais americanos", disse o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ao ser perguntado sobre as declarações do ex-ministro José Dirceu, de que estaria "sob controle" do Brasil a situação política na Bolívia às vésperas da eleição de Evo Morales, e que teria pedido moderação a Hugo Chávez.

"Ele teria dito, ou o documento disse que ele disse?", duvidou Amorim. "Inúmeras vezes participei de conversas com o presidente Lula com os presidentes Chávez e Morales e nunca ouvi ele usar as palavras conter, represar, obstar, dificultar", disse. "A palavra que ele usa é cooperar." Amorim garantiu que o Brasil se limitou a oferecer ajuda aos governos amigos para solução dos problemas internos ou com países vizinhos.

Valor Econômico, 7 de maio de 2008

Lula ofereceu ajuda aos EUA para deter Chávez

Ricardo Balthazar, Valor Econômico

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou para os Estados Unidos no início de 2005 que estava disposto a usar sua influência na América Latina para exercer um papel de moderador na região, oferecendo ajuda para conter as ambições do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as tensões sociais que começavam a se manifestar na Bolívia.

A mensagem de Lula foi transmitida pelo então ministro da Casa Civil, José Dirceu, ao final de um longo encontro que ele teve com a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, no dia 3 de março daquele ano, em Washington. Um resumo da conversa foi feito dias depois num informe enviado à embaixada americana no Brasil, do qual o Valor obteve uma cópia.

Condoleezza introduziu o assunto dizendo a Dirceu que o Brasil precisava mandar uma "mensagem clara" para Chávez. Dirceu respondeu afirmando que Lula já aconselhara o líder venezuelano a moderar sua retórica, avisando Chávez que ele estava "brincando com uma arma carregada", segundo o informe.

Dirceu acrescentou que o Brasil não acreditava que Chávez desse qualquer tipo de ajuda aos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), ao contrário do que os americanos sempre desconfiaram. Quanto à Bolívia, onde o líder cocaleiro Evo Morales se preparava para lançar sua candidatura presidencial, Dirceu garantiu à secretária que o Brasil tinha a situação "sob controle".
O informe sobre a conversa de Condoleezza com Dirceu faz parte de um conjunto de documentos internos do governo americano aos quais o Valor teve acesso nos últimos meses, depois de apresentar vários requerimentos amparados numa lei que permite a liberação de papéis desse tipo, a Lei de Liberdade de Informação (Foia, na sigla em inglês).

Os documentos abrem uma fresta que ajuda a entender a evolução das relações do Brasil com os Estados Unidos e seus vizinhos nos primeiros anos após a chegada de Lula ao poder. Eles mostram que o presidente cortejou o apoio dos americanos desde o começo, apresentando-se como um parceiro confiável, que podia ajudá-los a manter a estabilidade na América Latina.

De acordo com os papéis examinados pelo Valor, o próprio Lula deixou isso claro em pelo menos uma oportunidade, numa conversa que teve em junho de 2004 com o então secretário do Tesouro dos EUA John Snow, em Nova York, onde o presidente se encontrava para uma série de contatos com investidores.

Segundo um memorando do Departamento do Tesouro, Lula disse a Snow que o Brasil estava executando a "política externa mais agressiva de sua história" e que planejava usar o bom relacionamento que tinha com outros líderes da América Latina como "uma força pela estabilidade e pela democracia na região".

Lula disse ao secretário do Tesouro que as "democracias relativamente novas e frágeis" da região enfrentavam grandes desafios e precisavam de ajuda. Lula aproveitou a oportunidade e pediu uma mão para o Equador. Ele disse a Snow que o governo do país vizinho sentia-se "acossado" pela oposição e precisava de "tratamento especial" do Fundo Monetário Internacional (FMI) para recuperar sua economia.

Os documentos também mostram que Lula começou a imprimir um tom amistoso ao relacionamento com os americanos logo que desceu do palanque. Em 30 de outubro de 2002, três dias depois da sua consagração no segundo turno das eleições, ele chamou a então embaixadora dos EUA no Brasil Donna Hrinak para uma conversa no comitê central da sua campanha.

Segundo o relato enviado para Washington no dia seguinte, Lula parecia preocupado com as pressões que começava a sofrer do partido e de outros setores, mas garantiu a Donna que não haveria "nenhuma surpresa" em seu governo e que ele não teria perfil "ideológico". "Não vou ser um desses líderes que pensa que tem todas as respostas e precisa tomar todas as decisões", disse o presidente eleito à embaixadora.

Lula fez questão de estabelecer diferenças entre ele e outros líderes latino-americanos. Ao discutir a situação política em Cuba e sua amizade com Fidel Castro, pediu a Donna que não interpretasse seu apreço pessoal pelo dirigente comunista como um sinal de aprovação ao regime cubano e admitiu "que não havia liberdade em Cuba hoje".

Conquistar a boa vontade dos americanos era crucial para o novo presidente naquela altura. "Sabíamos que íamos enfrentar uma situação muito difícil no primeiro ano de governo e manter uma relação normal com os Estados Unidos era muito importante", disse Dirceu ao Valor, numa entrevista recente. "Abrir uma frente externa que se transformasse num problema era a última coisa que precisávamos."

As eleições brasileiras de 2002 foram acompanhadas com ansiedade em Washington, num momento em que a América Latina parecia ter voltado a ser um foco de instabilidade. A Argentina mergulhara numa profunda crise política e econômica com o fim do regime de câmbio fixo no país. Na Venezuela, Chávez estava em guerra com a oposição, que em abril tentara tirá-lo à força do poder e fracassara.

Nos dois casos as ações do governo americano contribuíram para esfriar seu relacionamento com a região. Os EUA foram o primeiro país a reconhecer como legítimo o governo provisório instalado na Venezuela após o golpe de abril, que durou menos de 48 horas. E os americanos levaram vários meses para aprovar um pacote de socorro financeiro do FMI para a Argentina.

A ascensão de líderes esquerdistas como Lula e Chávez assustava a direita americana. Dias antes do segundo turno no Brasil, um grupo de 27 congressistas do Partido Republicano mandou uma carta ao presidente George W. Bush para dizer que um novo "eixo do mal", constituído por Lula, Chávez e Fidel, representaria uma ameaça séria para a segurança dos EUA.

Ocupado com a guerra no Afeganistão e os preparativos para a invasão do Iraque, Bush não tinha tempo para prestar atenção na vizinhança. Mas o seu homem na região, o secretário-assistente de Estado para a América Latina, Otto Reich, um cubano-americano que no passado ajudara a combater os sandinistas na Nicarágua, estava bem preocupado com o que via.

Ele viajou para o Brasil em julho para tomar pé da situação. "Algumas pessoas vieram nos dizer que não podíamos deixar Lula virar presidente", disse Reich ao Valor. "Havia também alguns brasileiros nos dizendo que ele seria perigoso", acrescentou. "Mas não havia o que fazer e tomamos a decisão consciente de que não iríamos nos envolver."

As desconfianças que os americanos tinham de Lula foram eliminadas aos poucos. Dirceu foi a Washington e Nova York para manter contatos com investidores e autoridades em julho. Donna, que conhecera Dirceu e outros dirigentes petistas na década de 80 e tinha profunda admiração pessoal por Lula, ajudou a desanuviar o ambiente mostrando a Washington que não havia por que temer Lula.

Reich só começou a se convencer disso quando as urnas já estavam fechadas. Em novembro de 2002, ele encontrou-se com Lula em Brasília e passou quase três horas reunido com três de seus principais colaboradores, Dirceu, o futuro ministro Antonio Palocci, que na época coordenava a equipe de transição do novo governo, e o senador Aloizio Mercadante. "Foi ali que percebi que dava para trabalhar com eles", disse Reich ao Valor.

A conversa preparou terreno para um encontro que Lula teve com Bush na Casa Branca três semanas antes de tomar posse. De acordo com uma mensagem que Washington mandou mais tarde para suas embaixadas, Reich resumiu suas impressões pouco dias depois num encontro reservado com empresários no Chile. Ele continuava preocupado com a situação na Venezuela e achava que faltava "vontade política" para a Argentina sair da crise, mas estava "otimista" com Lula.

A aliança que Lula e os EUA começaram a construir naquele momento era conveniente para os dois lados. Lula queria o apoio americano para convencer os investidores de que estava falando sério quando prometia honrar as dívidas do país e conduzir a economia de maneira responsável. Para Bush, era importante ter um aliado no Brasil num momento em que o antiamericanismo crescia na região.

Diplomacia americana recorreu a Dirceu
para driblar resistências do Itamaraty

De Washington
Valor Econômico

O ex-ministro José Dirceu virou um interlocutor privilegiado do governo americano no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando os Estados Unidos buscaram um canal paralelo de diálogo com o círculo íntimo do presidente para driblar resistências que encontraram na diplomacia brasileira a uma aproximação maior dos dois países.

"O Itamaraty via a relação com Washington como um jogo de soma zero, em que um lado só ganha se o outro perder", disse ao Valor o ex-secretário-assistente de Estado dos EUA para a América Latina Roger Noriega, que ocupou o posto de 2003 a 2005. "Era importante ter um canal que passasse por cima disso e achávamos que Dirceu podia ser um interlocutor prático."

O ex-ministro desempenhou o papel com grande desenvoltura. Em 2005, semanas depois de se reunir em Washington com a secretária Condoleezza Rice, ele viajou às pressas para Caracas para falar com o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Dirceu voltou correndo para contar o que ouvira a Condoleezza, que encontrou novamente durante uma visita de dois dias que ela fez a Brasília na mesma época.

"O sentido da [nossa] mensagem era que o Brasil, que os Estados Unidos não deviam interferir nem na Venezuela, nem na Bolívia", disse Dirceu ao Valor, oferecendo uma versão diferente da que foi registrada no informe sobre sua conversa com Condoleezza. "A situação da Bolívia, não é que estava sob nosso controle. Estava sob controle. Não havia nada na Bolívia que pudesse ameaçar qualquer interesse."

O ex-ministro diz que não foi a Caracas levar recados dos EUA nem transmitiu mensagens de Chávez para Condoleezza na volta. Mas uma pessoa que foi informada sobre as conversas de Dirceu na época disse ao Valor que ele indicou a Condoleezza em Brasília que o presidente venezuelano manifestara interesse numa reaproximação com os americanos, exatamente o contrário do que aconteceu depois.

As relações da Venezuela com os EUA se deterioraram ainda mais nos meses seguintes. Em novembro de 2005, sete meses depois das conversas de Dirceu com Condoleezza, Chávez foi a um estádio lotado de manifestantes discursar contra o presidente George W. Bush, ao final de um encontro de líderes regionais em Mar del Plata, na Argentina. No dia seguinte, Lula recebeu Bush em Brasília com manifestações efusivas de simpatia.

A movimentação de Dirceu causou incômodo no Itamaraty na época. No seu encontro com Condoleezza em Washington, quando ela quis saber sua opinião sobre a situação na Venezuela, Dirceu sugeriu que o assunto fosse discutido no fim da reunião, quando os dois ficaram a sós por alguns minutos sem que os diplomatas que o acompanhavam pudessem ouvi-los.

Mas não parecia haver diferenças significativas entre Dirceu e o Itamaraty. Semanas depois, quando Condoleezza foi ao Brasil, ela ouviu do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, uma mensagem semelhante à de Dirceu. Perguntado sobre a Bolívia, Amorim disse que o Brasil levaria Evo Morales ao caminho da moderação, de acordo com uma pessoa que na época recebeu um relato da conversa.

O canal paralelo que os EUA estabeleceram com Dirceu perdeu importância com o tempo. Dirceu saiu do governo em junho de 2005, por causa do seu envolvimento no escândalo do mensalão. Noriega deixou o Departamento de Estado quatro meses depois e Condoleezza substituiu a linha-dura republicana por diplomatas de carreira, que estabeleceram relações mais amistosas com o Itamaraty. Bush e Lula passaram a se entender tão bem nos anos seguintes que intermediários como Dirceu tornaram-se desnecessários. (RB)

Valor Econômico, 6 de maio de 2008