terça-feira, 29 de abril de 2008

Invasão bilionária

EDITORIAL
Folha de S. Paulo

AS "OCUPAÇÕES", eufemismo para invasões, estimuladas pela administração Lula não se restringem ao setor agrário. Com financiamento estatal bilionário e apoio dos fundos de pensão controlados pelo governismo, duas companhias telefônicas acabam de "ocupar" um terreno irregular. A aquisição da Brasil Telecom pela Oi dá-se a contrapelo das normas anticoncentração responsáveis pelo sucesso da privatização da telefonia no país.

Como os contumazes invasores de terra, os artífices das negociações da "supertele verde-amarela" não temem repressão do Estado. Pelo contrário, estão certos de que serão, ao fim e ao cabo, premiados com a assinatura do presidente da República no decreto que, após o fato consumado, sacramentará o popular "liberou geral" nas regras para atuação desses gigantes empresariais em território nacional.

Invadidos em seus direitos podem se sentir os consumidores, diante do acúmulo de 78% no mercado de internet por linha discada e de 59% no por banda larga na chamada Região 1 (Minas, Rio e outros 16 Estados). Estarão expostos aos efeitos colaterais de uma decisão de gabinete, submetida à ação exclusiva de lobbies políticos e empresariais, que têm propensão genética a misturar-se na falta de luz.

O que o BNDES afirma tratar-se de uma consolidação de capital estratégica para o "interesse nacional" beneficia basicamente duas empresas privadas. O segundo grupo de felizardos, mais difuso, vai se locupletar com as gordas comissões, explícitas ou implícitas, que o negócio vai movimentar. Nenhum tijolo será assentado com os R$ 2,6 bilhões de dinheiro público oferecido pelo banco estatal para viabilizar a aquisição.

Não haverá garantia de criação de um único posto de trabalho. O negócio "estratégico" é tão pouco promissor nesse aspecto que um acordo teve de ser feito para que não haja demissões nos próximos três anos. O BNDES afirma que não vai colocar dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador, constituído por impostos, no negócio, mas que vai usar recursos da sua carteira de ações.

Não existiriam meios de movimentar R$ 2,6 bilhões dessa carteira que gerassem mais empregos e investimentos produtivos, num país com carências gravíssimas na infra-estrutura e que precisa atrair setores industriais de ponta tecnológica? Mas, na versão de "interesse nacional" do governo Lula, o cidadão paga na condição de contribuinte e continua pagando como usuário de telefonia para que uns poucos se beneficiem.

Folha de S. Paulo, 29 de abril de 2008

Algumas das dúvidas sobre a fusão da Oi com a Brasil Telecom

Rubens Glasberg, Tele Time

A operação para a fusão entre Brasil Telecom e Oi é um evento cercado de informações não-oficiais, de declarações em off e de muitas dúvidas. Quando um ministro finalmente tenta dar uma informação oficial, como fez Hélio Costa, é logo desmentido pelas empresas e repreendido pelo governo. O governo, que por um lado é apontado pela grande imprensa como o grande fomentador do negócio, não se pronunciou. O BNDES, que parece ser o pilar financeiro da operação, não detalha as diretrizes que está seguindo. As empresas confirmam, oficialmente, apenas conversas. Então, para contribuir para o debate, sugerimos uma relação de perguntas a serem feitas às autoridades responsáveis por permitir ou não a fusão, aos fundos de pensão, ao BNDES e aos acionistas das duas empresas.

A lista é longa, mas se justifica pela complexidade da operação. Vale lembrar que na tarde desta quinta, 31, o presidente Lula recebe a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, e o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, para tirar as dúvidas sobre a operação.

1) Qual o interesse público que pode ser atendido com a fusão entre a Brasil Telecom e a Oi?
Se a resposta for: "Estamos criando uma grande empresa nacional", pergunta-se:

2) Por que uma grande empresa nacional é algo que precisa do apoio do governo para ser criada?

3) O que esta grande empresa nacional fará em benefício do interesse público?

4) Esta grande empresa nacional expandirá sua área de atuação para outros mercados, tornando-se uma multinacional, trazendo divisas para o país?

5) Nesse caso, que oportunidades de negócio existem hoje no mundo para esta empresa?

6) E se esta empresa desistir por qualquer razão de atuar fora do país, o que fará o Estado brasileiro?

7) A empresa nacional ajudará o usuário a ter mais competição? Como? A grande empresa nacional competirá com a Telefônica no Estado de São Paulo e com a Embratel na longa distância?

8) Serão colocadas obrigações específicas a esta grande empresa nacional em relação à universalização dos serviços de banda larga e de telefonia?

9) Se sim, estas obrigações não a tornarão menos competitiva em relação à Telefônica e à Embratel?

10) A Telefônica e a Embratel também serão obrigadas a atuar na área da grande empresa nacional, ampliando a competição?

11) Nesse caso, alguém já perguntou se Telefônica e Embratel aceitam novas obrigações de universalização ou competição?

12) Se, então, a grande empresa nacional será uma forte multinacional e contribuirá para a universalização da banda larga, o que garante que os dois acionistas privados manterão os interesses públicos acima dos interesses privados?
Provavelmente a resposta aqui será: "os fundos de pensão e o BNDES terão acordo de acionistas que garantirá que os interesses públicos estarão acima dos interesses privados".

13) Então quer dizer que cabe aos fundos de pensão a defesa dos interesses públicos do Estado? Mas os fundos de pensão são instrumentos de Estado ou entidades privadas?

14) Os fundos de pensão têm responsabilidades, antes de tudo, com seus cotistas. E se o interesse dos cotistas não for o mesmo dos interesses do Estado?

15) E o que garante que o acordo de acionistas, base de todo o projeto de uma grande empresa nacional, será mantido pelo tempo que perdurar a concessão da grande empresa nacional?

16) Então, uma mudança na presidência do BNDES, ou na gestão dos fundos de pensão, pode levar a uma mudança no acordo de acionistas da grande empresa nacional? Ou ainda, o acordo de acionistas pode ser mudado a qualquer tempo?

17) Então, mudando o acordo de acionistas, os objetivos de uma grande empresa nacional podem ser mudados?

18) E, mudado o acordo de acionistas, a grande empresa nacional pode ser vendida para um grupo estrangeiro?
Se a resposta à pergunta 1 for: "O interesse público por trás da fusão é garantir que Oi e Brasil Telecom tenham condições de competir com Telefônica e Embratel, controladas por multinacionais da Espanha e México, respectivamente", cabe perguntar:

19) Os balanços da Oi e da Brasil Telecom estão ruins?

20) A Telefônica está competindo de maneira agressiva no mercado da Oi e da Brasil Telecom?

21) A Embratel está ameaçando o mercado da Brasil Telecom e da Oi?

22) A Oi e a Brasil Telecom estão tentando competir na área da Telefônica e não estão conseguindo?
Se a resposta à pergunta 1 for: "O interesse público por trás da operação é dar um alternativa de saída para os investimentos dos fundos de pensão e para o Citibank na Brasil Telecom", cabe perguntar:

23) E por que os fundos de pensão e o BNDES optaram por passar de uma posição de controle que têm hoje na Brasil Telecom e na Oi por uma posição minoritária?

24) Os fundos de pensão receberão algum pagamento para deixarem de ser controladores das empresas?

25) Por que o governo deve mudar a legislação para permitir aos fundos de pensão e ao Citibank terem uma opção de saída para seus investimentos?

26) Quem mais será beneficiado pela mudança de legislação para permitir a fusão?

27) Os grupos GP e Opportunity terão benefícios com essa operação de fusão?

28) Alguma parte do que os grupos GP e Opportunity receberão sairá dos recursos dos fundos de pensão ou do BNDES?

29) Se sim, qual o benefício para o BNDES de financiar a operação? Qual o benefício para os fundos de pensão?

30) Para fazer o acordo de fusão, os fundos de pensão precisarão negociar com o Opportunity?

31) Esta negociação significará que alguma ação na Justiça contra Daniel Dantas será retirada?

32) O que os fundos de pensão receberão de Daniel Dantas em troca de um acordo Judicial?

33) De que maneira o interesse público, sobretudo os interesses dos acionistas minoritários da Brasil Telecom, pode prevalecer em um acordo judicial com Daniel Dantas?

34) Quer dizer que as acusações que pesaram contra o Opportunity de fraude, desvio de recursos, enriquecimento ilícito, espionagem, corrupção, podem ser esquecidas em troca de um acordo que viabilize a criação de uma grande empresa nacional?

35) Por que a negociação para a criação de uma grande empresa nacional precisa passar por um acordo com o Opportunity?

36) Por que não processar o Opportunity por tudo o que se pensa que ele fez de errado e, uma vez decidido na Justiça, avaliar o cenário?
Se a resposta à pergunta 1 é: "O interesse público por trás da fusão é a oportunidade de corrigir os eventuais equívocos da privatização e voltar a dar ao Estado e ao capital nacional voz ativa no jogo nacional e internacional das telecomunicações", pergunta-se:

37) Será aproveitada a oportunidade então para corrigir outros pontos que não tiveram sucesso, como impor o compartilhamento de redes para o surgimento de novos competidores?

38) Nesse caso, a grande empresa nacional será obrigada a abrir a sua rede a novas empresas competidoras?

39) A grande empresa nacional terá obrigações de investir em desenvolvimento de tecnologia e pesquisa no Brasil?

40) A nova grande empresa nacional comprará equipamentos brasileiros? Há fabricantes nacionais de equipamentos que possam atender às demandas da grande empresa nacional?

41) Se tiver que investir em pesquisa e comprar equipamentos brasileiros, esta grande empresa nacional será competitiva em relação à Telefônica e Embratel?

42) O modelo atual de telecomunicações foi estabelecido na Lei Geral de Telecomunicações. De que forma o governo estabelecerá uma nova política? Por lei? Decreto? Ato da Anatel?

43) O Congresso, que elaborou o atual modelo, será consultado, já que a Lei Geral de Telecomunicações foi aprovada pelo Congresso?
Se a resposta à pergunta 1 for: "O interesse público está em acomodar vários interesses, já que a Telefônica e a TIM poderão se fundir e a Embratel poderá comprar a Net"

44) Qual o benefício de permitir uma fusão entre Telefônica e TIM?

45) Se é a Lei do Cabo quem impede que a Embratel assuma o controle da Net, o que é que a mudança na legislação para permitir a fusão entre Brasil Telecom e Oi tem a ver com a Lei do Cabo?

46) Por que o governo não exige uma golden share na nova empresa?

47) Por que o governo não estimula a criação de uma grande empresa nacional sem controladores, com capital pulverizado em bolsa?

48) Uma empresa nacional com capital pulverizado, sem controladores, não estaria muito mais blindada contra as variações de interesse de seus acionistas controladores?

49) Para fazer a mudança na legislação e permitir a fusão entre Oi e Brasil Telecom, caberá ao presidente da República a decisão política. A decisão política está tomada ou a sociedade, por meio do Congresso e de consultas públicas, será consultada?

50) A Lei Geral de Telecomunicações estabelece duas diretrizes que norteiam o atual modelo de telecomunicações: universalização e competição. Se a Anatel avaliar que nenhuma destas diretrizes está sendo fomentada com a fusão, a mudança na regulamentação para permitir a operação será feita mesmo assim? Ou o governo estabelecerá novas diretrizes?

51) Se o Cade constatar que existe concentração de mercado com a eventual fusão, o governo voltará atrás em relação à mudança na regulamentação ou o interesse de criar uma grande empresa nacional justifica a concentração?

52) Para avaliar uma eventual mudança no Plano Geral de Outorgas, o Conselho Consultivo da Anatel terá que ser consultado. A Lei Geral de Telecomunicações prevê que o conselho consultivo tenha representantes das prestadoras de serviços de telecomunicações (dois). Quem escolhe estes representantes é o governo. O governo escolherá representantes que não tenham conflito de interesse ao avaliarem uma mudança na regulamentação que permita a fusão?

* Rubens Glasberg é presidente da Converge Comunicações, empresa responsável pelas publicações especializadas Tela Viva, Teletime e Pay TV.

Publicado originalmente no site Teletime em 31 de janeiro de 2008

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Lula, o pelego?

Francisco C. Weffort

Que coisas tão graves em seus gastos na Presidência estará Lula procurando esconder da opinião pública? Que de tão grave têm as despesas dos palácios do Planalto, da Alvorada e da Granja do Torto que possam explicar a cortina de fumaça que o governo criou para impedir o controle dos cartões corporativos de Lula, Marisa, Lulinha, Lurian etc.? A estas alturas, só o governo pode responder a tais perguntas. E como o governo não responde, a opinião pública, sem os esclarecimentos devidos, torna-se presa de dúvidas sobre tudo e todos.

É conhecida a ojeriza de Lula a qualquer controle sobre gastos. Evidentemente os dele, da companheirada do PT, dos sindicatos e do MST, sem esquecer um sem-número de ONGs sobre as quais pesam suspeitas clamorosas. Ainda recentemente, ele vetou dispositivo de lei que exigia dos sindicatos prestação de contas ao TCU dos recursos derivados do imposto sindical (agora "contribuição"). Há mais tempo, Lula era contra o imposto em nome da autonomia sindical. Agora que está no governo, deixou ficar o imposto e derrubou o controle do TCU. Tudo como dantes no quartel de Abrantes. O que o Lula e os pelegos querem é o que já existia na "república populista", dinheiro dos trabalhadores sem qualquer controle.

Lula, a chamada "metamorfose ambulante", não se tornou ele próprio um pelego? Assim como defendeu a gastança dos sindicatos em nome da autonomia sindical, agora defende sua própria gastança na Presidência em nome da segurança nacional. Isso me lembra uma historinha de 1980, bem no início do PT, quando João Figueiredo estava no governo e Lula estava para ser julgado na Lei de Segurança Nacional. Junto com alguns outros, eu o acompanhei numa viagem à Europa e aos Estados Unidos em busca de apoio. Como outros na comitiva, eu acreditava piamente que tudo era em prol da liberdade sindical e da democracia, e as coisas caminharam bem, colhemos muita simpatia e apoio nos ambientes democráticos e socialistas que visitamos. Mas, chegando à Alemanha, fomos surpreendidos pela recepção agressiva do secretário-geral do sindicato alemão dos metalúrgicos. Claro, ele também era a favor da democracia e estava disposto a defender os sindicalistas. Sua agressividade tinha outra origem: o sindicato alemão que representava havia enviado algum dinheiro a São Bernardo e cobrava do Lula a prestação de contas! A conversa, forte do lado alemão, foi num jantar, e não permitia muitos detalhes, mas era disso que se tratava: alguém em São Bernardo falhou na prestação de contas e o alemão estava furioso. Lula se defendeu como pôde, mas, no essencial, dizia que não era com ele, que não sabia de nada.

A viagem era longa. Antes da Alemanha, havíamos passado pela Suécia, e fomos depois a França, Espanha, Itália e Estados Unidos. Em Washington, tivemos um encontro com representantes da AFL-CIO, e ali repetiu-se o mesmo constrangimento. Embora não tão agressivos quanto o alemão, os americanos queriam prestação de contas sobre dinheiro enviado a São Bernardo. Mas Lula, de novo, não sabia responder à indagação referente às contas. Ou não queria responder. Não era com ele.

Nunca dei muita importância a esses fatos. A atmosfera do país nos primeiros anos do PT era outra. Ninguém na oposição estava antenado para assuntos desse tipo. O tema dominante era a retomada da democracia. A corrupção, se havia, estaria do lado da ditadura. Saí da direção do PT em 1989 e me desfiliei em 1995. Até então era difícil imaginar que um partido tão afinado com o discurso da moral e da ética pudesse aninhar o ovo da serpente. Minha dúvida atual é a seguinte: será que a leniência do governo Lula em face da corrupção não tem raízes anteriores ao próprio governo? A propensão a tais práticas não teria origem mais antiga, no meio sindical onde nasceu o PT e a atual "república sindicalista"?

Talvez essa pergunta só encontre resposta cabal no futuro. Mas, enquanto a resposta não vem, algumas observações são possíveis. Parece-me evidente que no momento atual alguns auxiliares da Presidência - a começar pelos ministros Dilma Rousseff, Jorge Hage e general Jorge Felix - foram transformados em escudos de proteção de possíveis irregularidades de Lula e seus familiares. O outro escudo de proteção é Tarso Genro, que usa uma ginástica retórica para, primeiro, garantir, como Dilma, que o dossiê não existia, só um banco de dados. Depois passou a admitir que existia o dossiê, mas que isso todo mundo faz. Mais ou menos como no episódio do mensalão, lembram-se? Naquele momento, o então ministro Thomas Bastos, acompanhado por Delubio Soares, disse que mensalão não existia, que eram contas não regularizadas, sobras de campanha etc. E lula afirmou de público que isso todos os políticos faziam. O que não impediu que o procurador-geral da República visse no mensalão a prática delituosa de uma quadrilha criminosa.

Adotada a teoria do dossiê - aquele que não existia e que passou a existir - criou-se uma pequena usina de rumores, primeiro contra Fernando Henrique Cardoso e Dona Ruth, depois contra ministros do governo anterior. Minha pergunta é a seguinte: quando virão os dossiês contra Lula e Dona Marisa Letícia? Não é este o futuro que deveríamos almejar. Mas no que vai do andar da carruagem dirigida por um Lula cada vez mais ególatra e irresponsável é para lá que vamos, inelutavelmente. Quem viver verá.

FRANCISCO C. WEFFORT
é sociólogo

O Globo, 15 de abril de 2008

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Coluna do Castello

O processo dos humoristas

Através do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o Ministro da Justiça, que o preside, ficou oficialmente inteirado de que continuam presos os nove, redatores e administradores ' do Pasquim. Pôde, assim, verificar que, em favor daqueles jornalistas, não funcionou a ordem de soltura que deveria estar totalmente cumprida até a quinta-feira anterior às eleições.

O professor Alfredo Buzaid provà-velmente estará em condições de atender ao pedido de urgência formulado naquele Conselho para exame do caso. O assunto interessa do Govêrno sob vários ângulos da sua política de segurança, na qual o problema da boa imagem externa parece se impor como um item prioritário. A nós, jornalistas, interessa antes de mais nada como uma questão que afeta a nossa segurança de trabalho, pois ela envolve o delicado e vital tema da liberdade de imprensa.

A comunicação militar ás autoridades judiciais, relativa à prisão, deve ter uma data, a qual todavia não constou do noticiário dos jornais. Nela se informa que os jornalistas são acusados de infração à Lei de Segurança Nacional, embora não se apontem os dispositivos que teriam sido violados. Há uma alusão ao caráter político daquela publicação, mas de ordem bastante genérica e, aparentemente, subjetiva.

Não importa, porém, discutir êsses aspectos do problema, que serão, a seu tempo, apreciados pela Justiça Militar. Não está isso na alçada de um jornalista, por principio solidário com colegas que se viram cerceados no direito de exercer sua profissão. Há uma evidente conotação política na prisão désses jornalistas, cujo processo poderá resultar numa limitação ainda maior da precária liberdade de imprensa permitida pelas autoridades revolucionárias. Êsse o aspecto que interessa á todos, à nossa classe, ao Govérno, à opinião pública. Por aí, sobretudo, o tema se insere no âmbito de apreciação da crônica política à qual cabe ressaltar as implicações do caso no quadro evolutivo das instituições políticas nacionais.

A liberdade de imprensa, como se sabe, é o núcleo das liberdades que configuram o Estado democrático. Da sua plenitude, decorrem garantias de exercício das demais liberdades e franquias, tal a fôrça de contenção implícita no direito de acesso às fontes de informação e de manifestação do pensamento. A liberdade de imprensa é uma válvula de segurança dos cidadãos e do regime. Ela dá a medida da qualidade política objetiva de um govêrno, seja na sua afirmação seja na sua supressão.

Pode-se, portanto, sentir sem dificuldades os riscos inerentes a uma operação que detém praticamente todo o corpo redatorial de uma publicação. No caso brasileiro, isso parece representar o passo de uma escalada, pois até então não havíamos chegado a êsse ponto. Há, por conseguinte, motivos de apreensões, que é nosso dever apontar, alertando o Govérno.

Sabem, por outro lado, as figuras eminentes do mundo oficial que a repercussão mundial de uma restrição dêsse tipo é instantânea e negativa. A perseguição a intelectuais impressiona a opinião pública de todos os países livres, indistintamente. Para que se tenha uma idéia nítida do que, isso representa, basta lembrar o espaço que os jornais brasileiros costumam dedicar, justamente, aos processos contra artistas, escritores e cientistas que são a rotina da União Soviética e de outros Estados que não convivem com a liberdade de espirito inerente à natureza da atividade intelectual.

No caso do pessoal do Pasquim há um dado excitante para a crônica internacional. Pela primeira vez se move um processo coletivo contra humoristas. O processo corre o risco de uma identificação fácil para o leitor de qualquer parte do mundo. Será nas manchetes, sem dúvida, para escândalo geral e para deformação da nossa imagem, o "processo dos humoristas."

Por tôdas essas razões, o Govêrno deve meditar no tema para tratá-lo com os devidos cuidados. O Conselho de Defesa do professor Buzaid poderá atuar com urgência a fim de fixar pontos de restituição de franquias sob todos os aspectos indispensáveis à vida e ao conceito do nosso país.

Carlos Castello Branco

Jornal do Brasil, 29 de novembro de 1970

domingo, 6 de abril de 2008

A despedida do ombudsman da Folha de S. Paulo

Folha de S. Paulo, Mário Magalhães

A Folha condicionou minha permanência ao fim da circulação das críticas diárias na internet; não concordei; diante do impasse, deixo o posto

No ano que passou, quando as noites de domingo se insinuavam, e tantas famílias saíam para o último passeio do fim de semana, a minha sabia que ficaríamos em casa -ou pelo menos não iríamos todos. Era hora de eu começar a longa e solitária jornada madrugada adentro para terminar de esquadrinhar jornais e revistas.

De manhã, com as olheiras a denunciar o sono roubado, leria as edições do dia e escreveria a mais encorpada crítica semanal, a da segunda-feira. Hoje à noite, se alguém me chamar, terá companhia.

Esta é a 51ª e derradeira coluna dominical que escrevo como ombudsman da Folha. Assumi em 5 de abril de 2007, e o meu mandato se encerrou anteontem. Embora o estatuto autorize a renovação por mais dois períodos, não houve acordo com a direção do jornal para a continuidade.

A Folha condicionou minha permanência ao fim da circulação na internet das críticas diárias do ombudsman. A reivindicação me foi apresentada há meses. Não concordei. Diante do impasse, deixo o posto. Oitavo jornalista a ocupar a função, torno-me o segundo a não prosseguir por mais um ano. Todos foram convidados a ficar. Sou o primeiro a ter como exigência, para renovar, o retrocesso na transparência do seu trabalho.

A crítica da quinta foi a última que circulou na Folha Online, com acesso a não-assinantes da Folha e do UOL.

A partir de agora, os comentários produzidos pelo ombudsman durante a semana só poderão ser conhecidos por audiência restrita, de funcionários do jornal e da empresa, que os recebe por correio eletrônico. Os leitores perdem o direito. Era assim nos primórdios do cargo, criado em 1989. A internet engatinhava.

Como se constata no site www.folha.com.br/ombudsman, desde 2000 as críticas vão ao ar. Por oito anos, os leitores puderam monitorar a atividade cotidiana de quem tem a atribuição de representá-los.
Não poderão mais.

Regras

O comando da Folha esgrimiu um argumento para a decisão: no ambiente de concorrência exacerbada do mercado jornalístico, idéias e sugestões do ombudsman são implementadas por outros diários.
De fato, isso ocorre. E continuará a ocorrer.

Quase 20 anos atrás, as críticas ainda denominadas internas eram distribuídas em papel à Redação.
Acabavam nas bancadas de outros jornais. Um deles veiculou publicidade alardeando elogio do ombudsman.

Com a difusão por e-mail, será ainda mais difícil conter a distribuição irregular das anotações do ouvidor. Eventuais interessados, se bem articulados, terão como lê-las. Que segredo sobrevive a centenas de destinatários?

Já os leitores ditos comuns, os que fazem a fortuna de toda empreitada jornalística de sucesso, serão barrados. A medida não resolve o problema a cuja solução se propõe, mas prejudica quem é alheio a ele.
A não-renovação do mandato é legítima, respeita a Constituição do jornal. Sua direção tem a prerrogativa de convidar ou não o ombudsman a permanecer. E de estabelecer as normas. Não há quebra de contrato, e sim respeito.

No meu caso, haveria mudança de regra no meio da gestão, composta de um a três mandatos. Regras, como a Folha recomenda, devem ser estabelecidas antes do jogo.

Autópsia

Não é praxe dos jornais impressos do mundo inteiro compartilhar na rede o que muitos deles chamam de memorando interno do ouvidor.

Assim como, na conferência da Organização dos Ombudsmans de Notícias, com participantes de 13 países, não encontrei quem digitasse todo santo dia, como fazemos aqui, uma crítica ou memorando.
A Folha deu um passo ousado na imprensa brasileira ao nomear um ombudsman. Radicalizou e tornou públicas as críticas antes limitadas à Redação. Mais do que as colunas dominicais, essa espécie de parecer se destina a uma autópsia das edições. Em minúcias, identifica suas fraquezas, sem desprezar as virtudes. Expõe as vísceras do jornal.

O desafio do ombudsman é ser a melhor síntese possível dos interesses dos leitores. A eles interessa que o jornal seja bom. Nas críticas, o ombudsman busca contribuir para que o jornal do dia seguinte seja melhor que o da véspera.

Essa confluência faz do ombudsman um benefício potencial ao leitor e ao jornal.

Mesmo com as críticas vetadas aos leitores, a Folha não perderá a primazia em transparência no jornalismo nacional. As colunas de domingo persistirão, e a publicação de um artigo como este expressa tolerância com o pensamento divergente. Quantos jornais o imprimiriam, se o objeto de análise fossem eles?

Regressão

A despeito desse cenário, a restrição imposta configura regressão na transparência. O projeto editorial da Folha diagnostica "um jornalismo cada vez mais crítico e mais criticado". Reconhece que "o leitor fiscaliza a pauta de compromissos" do jornal.

O ombudsman deve ser um instrumento dos leitores. Se 80% dos pronunciamentos semanais ficam inacessíveis (as críticas de segunda a quinta; não escrevo às sextas), reduz-se a fiscalização dos leitores sobre aquele cuja atribuição é batalhar em nome deles.

Essa peleja não implica, em um exemplo, advogar o alinhamento do jornal com partidários ou opositores das pesquisas com células-tronco embrionárias, mas incentivar o equilíbrio no noticiário e nos espaços de controvérsia.

O ombudsman incapaz de zelar pela manutenção da transparência do seu ofício carece de autoridade para combater pela transparência do jornal. Como cobrar o que se topou diminuir?

A tendência mundial é de expansão da transparência das organizações jornalísticas. A novidade da Folha aparece na contramão.

Agradecimentos

A crítica diária é valiosa como instrumento de diálogo entre os leitores e o ombudsman. O que ele pensa disso e daquilo? Por vezes, a resposta se encontra nos apontamentos do dia. Na semana passada, foi possível conferir se eu perguntei à Folha quem lhe forneceu o dossiê do momento. A resposta significaria romper o compromisso de sigilo com a fonte. Um ministro disse que eu perguntei. Não é verdade.

Se fosse responder aos leitores sem a chance de lhes remeter à crítica on-line, não sei se daria conta do atendimento. Em 1991, primeiro ano do qual sobreviveu estatística, houve 3.748 contatos com o ombudsman. Em 2007, o recorde de 13.374.

Em janeiro, fevereiro e março de 2008, registraram-se marcas inéditas. O salto de 24% na comparação com idêntico trimestre do ano anterior projeta resultado anual superior a 16.500, sem considerar o impacto de eventos como eleição e Olimpíada.

O vigor do Departamento de Ombudsman é manifestação da mudança de comportamento de cidadãos e consumidores de notícias: a fé nos relatos jornalísticos dá lugar ao ceticismo; troca-se a submissão a versões pela leitura crítica; a passividade, por cobrança. Essa é a principal característica do jornalismo do século 21. Merece ser saudada pela sociedade e pelos jornalistas.

Na chegada, eu pensava ter muito a dizer. Ao partir, sei que tenho muito a ouvir.

Gostaria de ter falado de outros assuntos, dos anúncios de prostituição aos interesses cruzados do jornal. Fica para outra vez.

Pelo ano em que fui feliz, agradeço à confiança que a direção da Folha depositou em mim. Tive liberdade para escrever o que quis. Uma executiva me disse que o jornal precisava de um "ombudsman crítico". Tentei desempenhar escrupulosamente a missão.

Sou muito grato à minha supersecretária, Rosângela Pimentel, e ao meu assistente, o futuro jornalista Carlos Murga. Na Secretaria de Redação, devo a Suzana Singer e Alba Bruna Campanerut.

Na editoria de Arte, a Fábio Marra e Julia Monteiro. Ao colocar a coluna no papel e me salvar de vexames maiores, Vanessa Alves coordenou um time talentoso e generoso.

Minha gratidão maior é para quem me deu lições inestimáveis -hoje à noite, em casa ou na rua, não esquecerei o brinde aos leitores da Folha.



Folha de S. Paulo, 6 de abril de 2008