sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Trechos de "Viagens com o Presidente"

Trechos de "Viagens com o Presidente". O livro foi escrito pelos jornalistas Eduardo Scolese, da Folha de S. Paulo, e Leonencio Nossa, de O Estado de S. Paulo.


RELAÇÕES COM OS SUBORDINADOS
Numa tarde de calor infernal, o presidente Lula estava suado, abraçando e beijando admiradores numa cidadezinha da Bahia,e pediu uma toalha, com urgência. O ajudante de ordens ouviu e saiu meio desajeitado, lento, e Lula, irritado, comentou: "Olha o bundão, lá vai o bundão pegar a minha toalha". Ninguém estranhou. O governo mal começava, mas o descaso com as boas maneiras já era rotina no Planalto.

AINDA AS RELAÇÕES COM OS SUBORDINADOS
"Cadê as cartilhas, porra?" Esbraveja o Presidente da República. O ajudante de ordens tenta se desculpar. O Presidente está uma fera, elevando o tom da voz na frente de todos. Vermelho de raiva, Lula grita ao funcionário: "Como é que não trouxe as cartilhas, seu incompetente!"

LACAIOS COM DIPLOMA
"Tá vendo? Eu não tenho mesmo curso superior, mas quem carrega papel para mim tem.
Todos eles têm curso superior", disse Lula a um ministro, depois de receber um discurso das mãos de um assessor.

A SABEDORIA DA PRIMEIRA-DAMA
No final do primeiro ano de governo,Lula vai ao Egito e visita o Museu do Cairo. Naquele dia, o primeiro comentário ocorre quando é informado de que a tumba do faraó Tutancâmon foi a única entre as dos imperadores egípcios a resistir aos ataques de saqueadores:
- "Veja desde quando vem o crime organizado!" A seguir, é a vez da primeira-dama soltar a sua apreciação, ou ouvir do guia que os egípcios seguiam setenta mandamentos, e não apenas dez:
- "Imagine, setenta. É muito pecado!"

COMO DAR NOTÍCIAS
Lula, durante viagem ao Japão, a um assessor que queria fazer-lhe um relato das atividades da CPI dos Correios, nesse dia: "Deixa eu te dizer uma coisa, meu caro. É o seguinte.
Se você tiver que dar uma noticia ruim a um companheiro, não faça isso à noite, pelo amor de Deus. Se tiver passado das nove da noite, primeiro que não vai ter tempo para resolver mais nada naquele dia, e segundo, você ainda vai fazer o favor de estragar o sono do companheiro.
Ele não vai conseguir dormir mais com aquela coisa martelando na cabeça." O Presidente olha o assessor e solta mais uma preciosa dica: - "Ah, e de preferência também não dê uma notícia ruim a um companheiro pela manhã. Não dê, não dê. Isso vai fazer o companheiro começar o dia num baita mau humor. É horrível."

DISCUSSÃO CRÍTICA DA IMPRENSA
Na viagem que fez à Bolívia em janeiro de 2006, Lula fica irritado ao ler um artigo de jornal que aponta algumas falhas na política agrária do governo federal: - "Tem que mandar esse cara aqui tomar no cu. A gente aumenta o número de contratos da agricultura familiar, faz uma reforma agrária de qualidade e investe no agronegócio e ainda tem que ler isso aqui?"
-Ao notar o silêncio dos assessores, Lula prossegue o ataque:
- "Num caso como esse não tem jeito, meus caros, não tem jeito. Tem que mandar tomar no cu mesmo, não tem outro jeito."

VALE TUDO CONTRA ADVERSÁRIO
Numa sessão de cinema, no Palácio da Alvorada, num dos raros momentos em que o Presidente se dispõe a bater papo com senadores e deputados, ele foi questionado, em tom de brincadeira, pela senadora Ana Julia, do PT paraense.
--Presidente, diga para nós. O que existe de fato entre o senhor e o governador sergipano João Alves?
- "Eu sempre quis foder o João Alves. Já fiz aliança com todo mundo lá,com o Albano Franco, com o Almeida Lima. Eu faço aliança com qualquer um para foder o João Alves. Esse eu quero foder de qualquer jeito."

MANDANDO ENFIAR O DISCURSO
Na suíte presidencial de um hotel de Georgetown ao receber de um assessor o texto do discurso que fará sobre o combate mundial à fome.
Diante do Ministro Celso Amorim e de funcionários do Palácio do Planalto e do Itamaraty, o presidente folheia rapidamente a papelada e a arremessa a metros de distancia: - "Enfiem no cu esse discurso, caralho. Não é isso que eu quero, porra. Eu não vou ler essa merda. Vai todo mundo tomar no cu. Mudem isso, rápido."
"Mas isso também não basta para 'energizar' o presidente, por isso, a assessoria cria a 'hora da princesa'. De segunda a sexta, por volta das 15h, o gabinete é aberto para receber vereadores, antigos companheiros de sindicato, padres, princesas de festas regionais (daí o nome), empresários e pessoas simples que telefonam pedindo para tirar uma foto ao lado do presidente (...) Um assessor avalia: 'A hora da princesa é o momento depois do almoço para o presidente ganhar fôlego. As pessoas não entram no gabinete para pedir nada. Os abraços são gratuitos, fazem muito bem a ele. Podem chamar de populismo. (...) Após a hora da princesa, é outro homem'."

O MELÔ DO DIRCEU
"Nessa viagem ao Rio, o presidente está bem no estilo 'paz e amor' da campanha, com sua dose de animação um pouco além do habitual. Naquele dia, talvez por conta do esfriamento da crise política, resolve levar tudo aquilo na brincadeira. Em dado momento, para espanto e depois risos dos que o acompanham, o presidente caminha até a janela de seu luxuoso quarto e passa a cantarolar junto com os manifestantes o refrão de uma paródia feita para o ex-ministro da Casa Civil: 'Ei, José Dirceu, devolve o dinheiro aí, o dinheiro não é seu'. Saltitante, Lula repete o refrão com um sorriso aberto e os dedos indicadores para o alto como se estivesse num baile de Carnaval."

ACALMANDO A FERA COM CAFÉ E CIGARRILHA
"Lula não mede as palavras e fala o que quer (...). Embora não seja cordial como o antecessor, o presidente é visto com simpatia pelos seguranças por ter, segundo palavras dos próprios, a disposição de trabalho e o jeito durão de um militar. Não tem muita paciência. Para ele, tudo tem que ser na hora. Costuma estressar-se com auxiliares a qualquer vacilo. Fica nervoso, por exemplo, se vai a algum lugar que não tenha um café expresso à disposição. Ajudantes-de-ordens, assessores e seguranças sabem que o bom humor do presidente pode ir para o espaço se ele não conseguir fumar sua cigarrilha com uma xícara de café na mão."

"LÁ VEM O LEÃO"
"Nas viagens, em conversas pelo rádio, os seguranças recorrem a inúmeros códigos para garantir a integridade do chefe do governo. Em cada missão, o presidente é chamado por um apelido, geralmente em referência a mamíferos ou planetas (...). 'Lá vem o Leão', 'a Pantera está a caminho', 'Saturno tem pressa e está nervoso', o 'Eclipse apareceu'. Já a primeira-dama é muitas vezes chamada de 'Estrela' ou 'Damasco' (...). Os integrantes do Itamaraty têm um tratamento carinhoso e diferenciado, com direito até a nome de desenho animado. Diante da aproximação dos diplomatas, os seguranças comunicam os sinais de alerta: 'Lá vêm os Bambis' ou 'as Gazelas estão a caminho'."

EXAME DE PRÓSTATA COM A MINISTRA
"Numa audiência com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na época em que o governo começa a discutir a transposição de parte das águas do rio São Francisco, o presidente ouve a opinião contrária dela às obras e os argumentos favoráveis dos técnicos da área. Após ouvi-los, consola a ministra: 'Marina, essa coisa de meio ambiente é igual a um exame de próstata: não dá pra ficar virgem toda a vida. Uma hora eles vão ter que enfiar o dedo no c... da gente. Então, companheira, se é pra enfiar, é melhor que enfiem logo'. Lula, até para mostrar personalidade em relação aos 'estudiosos' e 'professores' do governo, leva para dentro do Planalto seu jeito descontraído, seu costume de falar palavrões."

O CIÚME DA PRIMEIRA-DAMA
"Marisa Letícia não se sente bem ao lado de seguranças. Se for mulher, pior ainda. Segurança mulher e ainda mais bonita, sem chance. No início do governo petista, uma militar alta e loira que fazia a segurança de Ruth Cardoso foi logo dispensada. A primeira-dama quer vê-las bem longe do marido (...). Ela gosta de cuidar da privacidade da família. Um exemplo disso ocorreu no início de governo, quando cortou as asinhas de alguns ajudantes-de-ordens que trabalhavam no Alvorada e se achavam no direito de circular livremente nas áreas privativas da residência. Marisa proibiu esse vaivém."

A "HORA DA PRINCESA"
"Mas isso também não basta para 'energizar' o presidente, por isso, a assessoria cria a 'hora da princesa'. De segunda a sexta, por volta das 15h, o gabinete é aberto para receber vereadores, antigos companheiros de sindicato, padres, princesas de festas regionais (daí o nome), empresários e pessoas simples que telefonam pedindo para tirar uma foto ao lado do presidente (...) Um assessor avalia: 'A hora da princesa é o momento depois do almoço para o presidente ganhar fôlego. As pessoas não entram no gabinete para pedir nada. Os abraços são gratuitos, fazem muito bem a ele. Podem chamar de populismo. (...) Após a hora da princesa, é outro homem'."

EU ODEIO O SUCATÃO
"A compra de um novo avião presidencial se tornou uma das obsessões do governo Lula. Uma prioridade. Mesmo ciente de que tal iniciativa poderia render-lhe um desgaste na opinião pública, por investir milhões de dólares na compra de uma aeronave diante de milhões de miseráveis no país, o presidente manifestava a certeza de que valia mesmo a pena arriscar. Tudo isso para se livrar do barulho e das constantes oscilações de temperatura no interior do Sucatão (...). Em solo, Lula dizia que o Boeing parecia um forno de microondas. No ar, segundo o presidente, um freezer ligado com a máxima potência."

A "SENZALA" DO AEROLULA
"Ao entrarem no Aerolula, ministros, assessores e demais credenciados encontram seus respectivos nomes em etiquetas coladas pela FAB em cada um dos assentos (...). Em conversas sem a presença do presidente, ministros e integrantes do alto escalão do governo chamam a parte traseira da aeronave de 'senzala', enquanto a cabine presidencial leva o apelido de 'casa-grande'. Ficar na senzala durante todo o vôo e não ser chamado por Lula para uma conversa na cabine presidencial é um sinal de falta de prestígio. Muitos preferem o constrangimento de se oferecer para uma conversa a correr o risco de serem ignorados por Lula na viagem."

DORMINDO NO CINEMA
"Logo na primeira sessão do cine Alvorada, Lula bola uma estratégia para evitar ao máximo o contato com os parlamentares. Chega ao local de exibição com um copo de uísque na mão já com o filme em andamento (...) Naquele dia, aos deputados e senadores ansiosos para pedir liberação de verbas para seus currais eleitorais, resta esperar o fim da sessão para falar com o presidente. Lula, que dormiu e roncou alto durante boa parte da exibição de Narradores de Javé, levanta-se rapidamente assim q ue o filme termina e numa tentativa inócua de ser sutil manda todo mundo embora de sua residência: 'Gente, vamos embora porque amanhã eu tenho muito o que fazer'."

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Trechos de "Honoráveis Bandidos", a história do senador José Sarney, por Palmério Dória

Quando Roseana deixou o Planalto [separada de Jorge Murad, no final da década de 1980, no fechar das portas do governo Sarney] e topou com o ex-namorado Carlos Henrique [Abreu Mendes, que foi secretário de Meio Ambiente no governo de Wellington Moreira Franco], estava deprimida.

Resolveu viajar, correr o mundo, divertir-se. E lá se foi para alguns dos lugares que ela mais ama: Monte Carlo, Atlantic City e Las Vegas.

Se você acha que essas cidades têm algo em comum, acertou: ela adora jogar. Diante do pano verde, seus olhos verdes se integram em perfeita simbiose. O girar da roleta, o tilintar das fichas, a voz do crupiê, a emoção da aposta, naquele ambiente esfumaçado, suprem-lhe qualquer deficiência emocional.

Isso já representou um trauma para a família, especialmente para José Sarney. Que, num discurso em 1993, chegou às lágrimas na tribuna do Senado, respondendo a uma nota da colunista Danuza Leão, que tratava das peripécias da moça por centros internacionais de carteado.

Às vezes, quando batia a fissura e não dava para atravessar o oceano, Roseana praticava uma espécie de política da boa vizinhança, prestigiando os cassinos do Paraguai. Ela, os irmãos e os amigos sempre puderam contar com o jatinho da família, um British Aerospace BAE 800, prefixo PP-ANA, registrado em nome de Mauro Fecury, suplente de Roseana no Senado e velho amigo de Sarney.
____________________________

Pai do deputado federal Clóvis Fecury, Mauro é dono do Centro Universitário Unieuro [Uniceuma, no Maranhão], com filial em Brasília. A família seria sócia nessa universidade, cuja biblioteca se chama Roseana Sarney. O reitor é Luiz Roberto Cury – marido de quem? De Emília Ribeiro, ex-assessora de Sarney que, como conselheira da Anatel por indicação do padrinho, deu o voto de desempate na fusão das empresas de telefonia Brasil Telecom e Oi, negócio de mais de R$ 5 bilhões – com o quê, a BrOi passou a dominar quase metade dos acessos de dados no país (42,41%).

Outras vezes, ao voltar das jogatinas para São Luís, batia na turma uma vontade irreprimível de comer na churrascaria Porcão, em Brasília. Os meninos mandavam o piloto aterrissar para matar a fome. Um desses pilotos que os levavam, antigo na aviação nacional, pediu demissão.

“O vôo de ida e volta de São Luís para Assunção não era nada perto desses, digamos, pousos de emergência”, diz ele, pedindo para não revelar o nome.

Ele quis dizer o seguinte: o pouso inesperado de um jatinho num aeroporto internacional, com o custo operacional completo, reabastecimento, aluguel de hangar etc., sai mais caro que o vôo São Luís-Assunção em si. O veterano piloto não suportou tais descalabros, foi embora.

Dizem os amigos que, se os adversários de Roseana soubessem de sua obsessão pela jogatina, poderiam fazer bom uso, porque ela seria capaz de largar tudo por uma mesa de pif-paf. Não deve ser exagero. Por causa dessa insana paixão, Roseana abriu a temporada de escândalos com passagens aéreas no Congresso.

Deu no Jornal Pequeno, combativo diário de São Luís do Maranhão, edição de 15 de março de 2009:

“Maratona de jogatina reuniu pelo menos 10 pessoas. Roseana Sarney admite que 4 viajaram de São Luís a Brasília com sua cota no Senado.”

A moça é realmente da pá virada. Um mês depois que o pai virou presidente do senado, ela transformou a residência oficial da Presidência daquela Casa em cassino. Com carinha de inocente, quando o resto da mídia “descobriu” a farra, ela disse que passaram o sábado e o domingo em “reunião de trabalho”.

No passado o dolce far niente internacional pelas rodas de carteado era bancado por um cartão de crédito com fundos ilimitados, emitido por um banco de Miami, o Schroder, segundo denúncia do Jornal do Brasil e da revista Exame. Dono da conta responsável pelo débito mensal desse cartão da felicidade: Edemar Cid Ferreira. Padrinho de casamento de Roseana e Jorge Murad, na Catedral da Sé, em São Luís, em 1976, onde Edemar conheceu a futura mulher [Márcia Costa].

Roseana e Jorge, por sua vez, viriam a se tornar padrinhos de casamento de Edemar e Márcia. Filha de quem? Daquele senador Alexandre Costa, lembram-se? Um dos que estavam metidos no famoso rolo da gráfica do senado, em 1994 (esse político, famoso por sua violência, com base eleitoral na cidade interiorana de Caxias, morreria em 1998).

Márcia é a maior amiga de Roseana, que – não se esqueçam – também estava naquele mesmo rolo. É no ombro de Márcia que Roseana vai chorar mágoas, na mansão de R$ 142 milhões do casal, no chique bairro paulistano de Cidade Jardim, vizinhos dos igualmente banqueiro Joseph Safra e do megaempresário Antônio Ermírio de Morais.
____________________________

Aqueles atípicos 2 milhões [sacados por Fernando Sarney da conta da Mirante às vésperas do 2º turno das eleições para governador que Roseana Sarney perdeu, em 2006] deveriam turbinar a campanha de Roseana. E a quem as togas cassarão, dois anos depois, por “abuso de poder econômico”? O vencedor das eleições, o médico Jackson Lago. Roseana, e com ela personagens que vão e vêm, tal qual nos filmes eternamente repetidos nas sessões da tarde da televisão. Gaguinho é um deles.



No centro histórico de São Luís, dois do povo conversam:

“Qual a pior coisa do Maranhão?

A família Sarney.

Qual a melhor coisa do Maranhão?

Ser da família Sarney”.

Pois então, Roseana mal retoma “seu” Maranhão, e já leva o tio, Ernane Sarney, velho faz-tudo dela, para a Casa Civil, mesmo envolvido até o pescoço na Operação Navalha.

“Grampo” da Polícia Federal, realizado em março de 2007, capta titio cobrando propina que a construtora Gautama lhe devia. A Operação Navalha desmontaria, dois meses depois, um esquema de fraudes em licitações de obras públicas. A conversa se deu entre Ernane César Sarney Costa, o Gaguinho, irmão do coronel e secretário particular de Roseana, e na outra ponta da linha Gil Jacó Carvalho Santos, tesoureiro da Gautama, empreiteira de Zuleido Veras. Gil Jacó era quem pagava as propinas e foi um dos 61 denunciados pelo Ministério Público Federal no Superior Tribunal de Justiça.

O Jornal Pequeno, de São Luís, teve acesso ao diálogo interceptado e publicou trechos na edição de 24 de agosto de 2008.

Segundo o repórter Oswaldo Viviani, Ernane cobra de forma agressiva o pagamento, diz que está “com a corda no pescoço” e que “o pessoal aqui também tá com a corda no pescoço”, o que leva a crer que não é o único beneficiado:

“Você disse que ia pagar, rapaz! Já tava tudo na mão, eu não sei o que tá acontecendo. Tão me enrolando”, diz Ernane. “Tava na mão, tava na mão. Só conversa, rapaz. Eita, porra!”, explode o tio de Roseana e seu futuro aspone na Casa Civil, exigindo: “Rapaz, fala com ele! Bota isso em prioridade”. Ele, segundo a reportagem, é o chefão da Gautama, Zuleido Veras.

A Gautama depositou dinheiro na conta da mulher e do filho de titio Ernane. A mulher é Shirley Duarte Pinto de Araújo, assessora do Senado lotada no gabinete de Roseana; o filho é Ricardo Sarney.

Nos depósitos para Shirley, a Gautama tratou de evitar o valor de R$ 10 mil em cada operação para fugir à fiscalização. Em 7 de abril de 2006, depositou R$ 9.950, às 15h20, e cinco minutos depois, mais cinquentinha que faltavam.

Depósitos e diálogos comprometedores, lembra o Jornal Pequeno, somam-se a outros indícios de envolvimento do clã Sarney com as fraudes da Gautama, que a revista Veja revelou em junho de 2008. Ali, uma agenda de Zuleido Veras, apreendida em maio de 2007, contém a anotação do nome de Roseana ao lado da quantia de R$ 200 mil, dois meses antes da eleição para o governo do Maranhão, na qual ela (ainda no PFL, depois DEM) perdeu para o pedetista Jackson Lago.

Na mesma agenda, Roseana aparece numa anotação, a 14 de abril, ao lado da cifra de R$ 63 milhões.

Gaguinho, ou titio Ernane, Roseana nomeou chefe da Assessoria de Programas Especiais da Casa Civil. Ou seja, não precisa fazer nada, não, se não quiser. Uma sinecura.
____________________________

Estamos em 2009. Na data em que completa meio século de carreira política, aos 78 anos, o velho coronel comemora sem o menor sinal de euforia. Por certo pesam-lhe na memória as palavras de seu falecido amigo Roberto Campos, tão entreguista que lhe pespegaram o apelido de Bob Fields, ministro do Planejamento de Castelo Branco, primeiro general de plantão do governo militar:

"Certas vitórias parecem o prenúncio de uma grande derrota. É um amanhecer que não canta."

Deputado federal, governador do Maranhão, presidente da República, cinco vezes senador. E, no início desse ano pré-eleitoral, eis que em 2010 se dariam eleições presidenciais, ele chegava pela terceira vez à presidência do Senado. Mas tinha a sensação de que tudo aquilo que havia conquistado em meio século de vida pública podia estar por um segundo. Não foi de bom agouro a cena que se seguiu a seu discurso de pouco mais de cinco minutos, ao apresentar sua candidatura à presidência da Casa, naquela manhã de 2 de fevereiro, dia de festa no mar. Em sua fala, ele citou por sinal Nossa Senhora dos Navegantes, depois de se comparar a Rui Barbosa pela longevidade na vida pública e de proclamar que não houve escândalos em suas outras passagens no cargo. Esperava uma sessão rápida, mas, para sua inquietação, vários pares passaram a revezar-se para defender o outro candidato à presidência do Senado, o petista acreano Tião Viana, e aproveitaram para feri-lo. Assim, quando abriram a inscrição para os candidatos, ele pediu para falar. Queria dar a última palavra.

Marcado pela fama de evitar confrontos em plenário, fugiu a seu estilo e fez um pronunciamento duro. Um improviso daqueles que a gente leva um mês para preparar. Deixou claro que não gostou de ver Tião Viana posar de arauto da modernidade e higienizador da podridão que paira nos ares do parlamento brasileiro.

Depois de lembrar a coincidência de 50 anos antes, quando no dia 2 de fevereiro de 1959 assumia o primeiro mandato no Congresso como deputado federal, atacou:

"Não concordo quando se fala na imoralidade do Senado. O Senado é os que aqui estão. Reconheço que, ao longo da nossa vida, muitos se tornaram menos merecedores da admiração do país, mas não a instituição."

Então, pronunciou as palavras seguintes, que trazem os sinais trocados, pois tudo quanto você vai ler é tudo quanto o velho senador não é:

"Durante a minha vida, passei aqui nesta Casa 50 anos. Muitas comissões, vamos dizer assim, muitos escândalos existiram envolvendo parlamentares, mas nunca o nome do parlamentar José Sarney constou de qualquer desses escândalos ao longo de toda a vida do Senado." Disse mais: "A palavra ética, para mim, que nunca fui de alardear nada, é um estado de espírito. Não é uma palavra para eu usar como demagogia ou uma palavra para eu usar num simples debate."

A filha Roseana Sarney, senadora pelo Maranhão, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o mesmo PMDB do pai, caminhava pelo plenário, muito nervosa. Estava em lágrimas quando o pai encerrou sua fala. Os oitenta pares o aplaudiram protocolarmente, mas um deles, de um salto pôs-se de pé e bateu palmas efusivas, acompanhadas do revoar de suas melenas. Tratava-se de Wellington Salgado, do PMDB mineiro, conhecido como Pedro de Lara ou Sansão.

Onde se encontravam os jornalistas de política nesse momento, que não registraram tal despautério? Pedro de Lara é aquela figura histriônica que roubava a cena no programa Silvio Santos como jurado ranzinza, debochado e falso moralista. E Sansão, o personagem bíblico que perdeu o vigor quando Dalila o traiu cortando-lhe a cabeleira.

Esta fi gura caricata pareceria um estranho no ninho em qualquer parlamento do mundo. Nascido no Rio, é dono da Universidade Oliveira Salgado, no município de São Gonçalo, e responde a processo por sonegação de impostos no Supremo Tribunal Federal. Conseguiu um domicílio eleitoral fajuto em Araguari, Minas Gerais, e praticamente comprou um mandato de senador ao financiar de seu próprio bolso, com 500 mil reais, uma parte da milionária campanha para o Senado de Hélio Costa, o eterno repórter do Fantástico da Rede Globo em Nova York.

Com a ida de Hélio para o Ministério das Comunicações de Lula, seu suplente Wellington então ganhou uma cadeira no Senado Federal, presente que ele paga com gratidão tão desmesurada, que separa da verba de seu gabinete todo santo mês os 7 mil reais da secretária particular do ministro. Nesse tipo de malandragem, fez como seu ídolo, colega de Senado Renan Calheiros, que vinha pagando quase 5 mil mensais para a sogra de seu assessor de imprensa ficar em casa sem fazer nada.

Mas o cabeludo senador chegou à ribalta em 2007, justamente como aguerrido integrante da tropa de choque que salvou o mandato de Renan Calheiros, então presidente do Senado e estrela principal do episódio mais indecoroso daquele ano, com amante pelada na capa da Playboy, bois voadores e fazendas-fantasma. O alagoano Renan, com uma filha fora do casamento, que teve com a apresentadora de tevê Mônica Veloso, bancava a moça com mesada paga por Cláudio Gontijo, diretor da construtora Mendes Júnior. Ao tentar explicar-se, Renan enredou-se em notas frias, rebanho superfaturado, rede de emissoras de rádio em nome de laranjas, enquanto Mônica mostrava aos leitores da revista masculina da Editora Abril a borboleta tatuada na nádega.

Durante 120 dias, enxotado pela mídia e pela opinião pública, Renan resistiu no cargo, suportando humilhações como o plenário oposicionista virando-lhe as costas no dia em que tentou presidir uma sessão. Esse era o Renan que, quase dois anos depois, no 2 de fevereiro de 2009 posaria vitorioso como articulador-mor da volta de José Sarney à presidência da Casa.

Quem diria, não? O José Sarney que já foi companheiro de um nacionalista respeitado como Seixas Dória, de um articulador do calibre de José Aparecido de Oliveira, de um jurista do porte de Clóvis Ferro Costa, todos três integrantes do grupo Bossa Nova, espécie de esquerda da União Democrática Nacional, a conservadora UDN, todos três ostentando o galardão de ter sido cassados pelo golpe militar de 1964, e sabe-se lá por quais artes só ele, Sarney, dentre os quatro amigos escapou da cassação, esse mesmo Sarney agora festejado pelo cabeludo sonegador e por uma das mais desmoralizadas figuras do cenário político brasileiro, Renan Calheiros, que tinha nos costados um inquérito com 29 volumes tramitando no Supremo.

Quer fechar o círculo direitinho? Em 2007, depois de absolvido pelo plenário em votação secreta e escapar da cassação por quebra de decoro parlamentar, na casa de quem Renan Calheiros comemorou a preservação do mandato? Na casa de seu salvador, Sarney, junto com outras figuras, como o deputado federal e ex-presidente do Senado Jader Barbalho, com know-how em renúncia para escapar de cassação; Romero Jucá, líder do PMDB no Senado; Edison Lobão, futuro ministro das Minas e Energia; e, claro, Roseana Sarney. Nesse festejo, no Lago Sul de Brasília, não se esqueceram de "homenagear" o senador amazonense Jefferson Peres. Esta fi gura íntegra do parlamento brasileiro, relator do caso Renan no Conselho de Ética, recomendou a cassação, pedida pelo povo brasileiro. Os convivas mimoseavam Jefferson a todo momento, referindo- se a ele como "aquele pobre relator".

Memorável dia 2 de fevereiro. Surpreendentes seriam as fotografias nos jornais do dia seguinte. Sarney de óculos escuros como os ditadores latino-americanos do passado, amparado pelo colega de PMDB Michel Temer, eleito presidente da Câmara, igualmente pela terceira vez. Barba e bigode. Este Michel Temer merece umas pinceladas.
____________________________

No jardim do memorial há um pátio externo cercado de palmeiras imperiais. No cenário bucólico destaca-se uma lápide de granito preto, com três metros de largura por sdeis de comprimento, cercada de correntes. Ela espera pela morte de José Sarney. Naquele espaço será erguido seu mausoléu.

Nos delírios de personagem de romances latino-americanos, ele imagina o túmulo como centro de peregrinação. Inveja cortejos fúnebres como os de Getúlio, um milhão de brasileiros nas ruas do Rio; aquela massa de paulistanos se despedindo de Tancredo; os milhares de baianos tomando as ruas de Salvador, entre o Palácio de Ondina e o Campo Santo, para dar um adeus a Antonio Carlos Magalhães; a comoção popular que tomou quatro quarteirões de Buenos Aires, gente à espera de passar pelo velório do presidente Raul Alfonsin que, sucedendo à ditadura militar, enquandrou os comandantes das torturas e mortes, ao contrário dele, que os abrigou.

O velho coronel sabe, no fundo, que seu passamento passará.
____________________________

Estamos em 2009. Na data em que completa meio século de carreira política, aos 78 anos, o velho coronel comemora sem o menor sinal de euforia. Por certo pesam-lhe na memória as palavras de seu falecido amigo Roberto Campos, tão entreguista que lhe pespegaram o apelido de Bob Fields, ministro do Planejamento de Castelo Branco, primeiro general de plantão do governo militar:

"Certas vitórias parecem o prenúncio de uma grande derrota. É um amanhecer que não canta."

Deputado federal, governador do Maranhão, presidente da República, cinco vezes senador. E, no início desse ano pré-eleitoral, eis que em 2010 se dariam eleições presidenciais, ele chegava pela terceira vez à presidência do Senado. Mas tinha a sensação de que tudo aquilo que havia conquistado em meio século de vida pública podia estar por um segundo. Não foi de bom agouro a cena que se seguiu a seu discurso de pouco mais de cinco minutos, ao apresentar sua candidatura à presidência da Casa, naquela manhã de 2 de fevereiro, dia de festa no mar. Em sua fala, ele citou por sinal Nossa Senhora dos Navegantes, depois de se comparar a Rui Barbosa pela longevidade na vida pública e de proclamar que não houve escândalos em suas outras passagens no cargo. Esperava uma sessão rápida, mas, para sua inquietação, vários pares passaram a revezar-se para defender o outro candidato à presidência do Senado, o petista acreano Tião Viana, e aproveitaram para feri-lo. Assim, quando abriram a inscrição para os candidatos, ele pediu para falar. Queria dar a última palavra.

Marcado pela fama de evitar confrontos em plenário, fugiu a seu estilo e fez um pronunciamento duro. Um improviso daqueles que a gente leva um mês para preparar. Deixou claro que não gostou de ver Tião Viana posar de arauto da modernidade e higienizador da podridão que paira nos ares do parlamento brasileiro.

Depois de lembrar a coincidência de 50 anos antes, quando no dia 2 de fevereiro de 1959 assumia o primeiro mandato no Congresso como deputado federal, atacou:
"Não concordo quando se fala na imoralidade do Senado. O Senado é os que aqui estão. Reconheço que, ao longo da nossa vida, muitos se tornaram menos merecedores da admiração do país, mas não a instituição."

Então, pronunciou as palavras seguintes, que trazem os sinais trocados, pois tudo quanto você vai ler é tudo quanto o velho senador não é:

"Durante a minha vida, passei aqui nesta Casa 50 anos. Muitas comissões, vamos dizer assim, muitos escândalos existiram envolvendo parlamentares, mas nunca o nome do parlamentar José Sarney constou de qualquer desses escândalos ao longo de toda a vida do Senado." Disse mais: "A palavra ética, para mim, que nunca fui de alardear nada, é um estado de espírito. Não é uma palavra para eu usar como demagogia ou uma palavra para eu usar num simples debate."

A filha Roseana Sarney, senadora pelo Maranhão, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o mesmo PMDB do pai, caminhava pelo plenário, muito nervosa. Estava em lágrimas quando o pai encerrou sua fala. Os oitenta pares o aplaudiram protocolarmente, mas um deles, de um salto pôs-se de pé e bateu palmas efusivas, acompanhadas do revoar de suas melenas. Tratava-se de Wellington Salgado, do PMDB mineiro, conhecido como Pedro de Lara ou Sansão.

Onde se encontravam os jornalistas de política nesse momento, que não registraram tal despautério? Pedro de Lara é aquela figura histriônica que roubava a cena no programa Silvio Santos como jurado ranzinza, debochado e falso moralista. E Sansão, o personagem bíblico que perdeu o vigor quando Dalila o traiu cortando-lhe a cabeleira.

Esta figura caricata pareceria um estranho no ninho em qualquer parlamento do mundo. Nascido no Rio, é dono da Universidade Oliveira Salgado, no município de São Gonçalo, e responde a processo por sonegação de impostos no Supremo Tribunal Federal. Conseguiu um domicílio eleitoral fajuto em Araguari, Minas Gerais, e praticamente comprou um mandato de senador ao financiar de seu próprio bolso, com 500 mil reais, uma parte da milionária campanha para o Senado de Hélio Costa, o eterno repórter do Fantástico da Rede Globo em Nova York.

Com a ida de Hélio para o Ministério das Comunicações de Lula, seu suplente Wellington então ganhou uma cadeira no Senado Federal, presente que ele paga com gratidão tão desmesurada, que separa da verba de seu gabinete todo santo mês os 7 mil reais da secretária particular do ministro. Nesse tipo de malandragem, fez como seu ídolo, colega de Senado Renan Calheiros, que vinha pagando quase 5 mil mensais para a sogra de seu assessor de imprensa ficar em casa sem fazer nada.

Mas o cabeludo senador chegou à ribalta em 2007, justamente como aguerrido integrante da tropa de choque que salvou o mandato de Renan Calheiros, então presidente do Senado e estrela principal do episódio mais indecoroso daquele ano, com amante pelada na capa da Playboy, bois voadores e fazendas-fantasma. O alagoano Renan, com uma filha fora do casamento, que teve com a apresentadora de tevê Mônica Veloso, bancava a moça com mesada paga por Cláudio Gontijo, diretor da construtora Mendes Júnior. Ao tentar explicar-se, Renan enredou-se em notas frias, rebanho superfaturado, rede de emissoras de rádio em nome de laranjas, enquanto Mônica mostrava aos leitores da revista masculina da Editora Abril a borboleta tatuada na nádega.

Durante 120 dias, enxotado pela mídia e pela opinião pública, Renan resistiu no cargo, suportando humilhações como o plenário oposicionista virando-lhe as costas no dia em que tentou presidir uma sessão. Esse era o Renan que, quase dois anos depois, no 2 de fevereiro de 2009 posaria vitorioso como articulador-mor da volta de José Sarney à presidência da Casa.

Quem diria, não? O José Sarney que já foi companheiro de um nacionalista respeitado como Seixas Dória, de um articulador do calibre de José Aparecido de Oliveira, de um jurista do porte de Clóvis Ferro Costa, todos três integrantes do grupo Bossa Nova, espécie de esquerda da União Democrática Nacional, a conservadora UDN, todos três ostentando o galardão de ter sido cassados pelo golpe militar de 1964, e sabe-se lá por quais artes só ele, Sarney, dentre os quatro amigos escapou da cassação, esse mesmo Sarney agora festejado pelo cabeludo sonegador e por uma das mais desmoralizadas figuras do cenário político brasileiro, Renan Calheiros, que tinha nos costados um inquérito com 29 volumes tramitando no Supremo.

Quer fechar o círculo direitinho? Em 2007, depois de absolvido pelo plenário em votação secreta e escapar da cassação por quebra de decoro parlamentar, na casa de quem Renan Calheiros comemorou a preservação do mandato? Na casa de seu salvador, Sarney, junto com outras figuras, como o deputado federal e ex-presidente do Senado Jader Barbalho, com know-how em renúncia para escapar de cassação; Romero Jucá, líder do PMDB no Senado; Edison Lobão, futuro ministro das Minas e Energia; e, claro, Roseana Sarney. Nesse festejo, no Lago Sul de Brasília, não se esqueceram de "homenagear" o senador amazonense Jefferson Peres. Esta figura íntegra do parlamento brasileiro, relator do caso Renan no Conselho de Ética, recomendou a cassação, pedida pelo povo brasileiro. Os convivas mimoseavam Jefferson a todo momento, referindo- se a ele como "aquele pobre relator".

Memorável dia 2 de fevereiro. Surpreendentes seriam as fotografias nos jornais do dia seguinte. Sarney de óculos escuros como os ditadores latino-americanos do passado, amparado pelo colega de PMDB Michel Temer, eleito presidente da Câmara, igualmente pela terceira vez. Barba e bigode. Este Michel Temer merece umas pinceladas.

sábado, 8 de agosto de 2009

Elle, o de sempre

Roberto Pompeu de Toledo
Veja, 8 de agosto de 2009

"Quando Collor se cansou de Simon e de Sarney, sobrou
para quem? O colunista que vos fala. O que disse é mentira.
Mais uma vez: MENTIRA. E uma terceira: MEN-TI-RA"


Pode sentir-se defendido quem tem em sua defesa a dupla formada pelos senadores Renan Calheiros e Fernando Collor de Mello? Há defesas que ferem como ataque. Num primeiro momento funcionam, como funcionou a furibunda blitz desfechada pela dupla contra o senador Pedro Simon, na memorável sessão do Senado da última segunda-feira. A torrente de insultos, insinua-ções e, da parte de Collor, assustadoras caretas lançadas contra Simon intimidou o senador gaúcho a ponto de, como ele afirmaria mais tarde, ter sentido medo físico. Mas o ônus de carregar pela vida afora, e biografia adentro, o fato de ter contado com tais defensores supera o alívio momentâneo. Os senadores do PT sabem disso e conspicuamente procuram se dissociar dos referidos senhores. Já o presidente do Senado, José Sarney, não bastassem os próprios problemas, é refém de um duo cujo abraço aperta, aprisiona e sufoca como tenaz.

O senador Collor superou-se, naquele dia, na utilização dos velhos recursos em favor do novo papel de injustiçado e sofredor. Buscando inspiração no aparelho digestivo, ordenou a Simon que "engolisse" as próprias palavras e "as digerisse como julgasse conveniente". Chamou o honrado senador de "parlapatão". E enquanto isso armava seu impressionante repertório de expressões fisionômicas e exalações corporais, um conjunto que, querendo sublinhar indignação, acaba por revelar um perturbador descontrole. A respiração era pesada como a do touro ao investir contra o pano vermelho. Repetiam-se os estranhos olhos fixos de outras ocasiões. E a alturas tantas, quando se cansou de Simon e de Sarney, sobrou para quem? Quem? Quem? O colunista que vos fala. Disse ele que "o jornalista chamado Roberto Pompeu de Toledo, que costuma sujar a última página de uma revista local, se não me engano a VEJA", procurou o ministro Ilmar Galvão, encarregado, no Supremo Tribunal Federal, de relatar o processo contra ele, Collor, à época do impeachment, e lhe propôs: "Ministro, declare a culpa do Fernando Collor que nós daremos ao senhor a capa e as entrevistas de páginas amarelas da revista". O ministro, indignado, teria expulsado o interlocutor de seu gabinete.

Deus do céu, quanta pretensão, num pobre jornalista, achar que a efêmera glória do bom tratamento num órgão de imprensa pudesse influenciar o julgamento de um ministro do Supremo! Collor acrescentou que Roberto Pompeu de Toledo não poderia desmentir tal episódio. Pode sim. É mentira. Mais uma vez: MENTIRA. E uma terceira: MEN-TI-RA. A conversa que na época o colunista teve com Ilmar Galvão não teve nunca, jamais e em tempo algum o caráter de (ingênua) negociação do julgamento do ministro contra possível tratamento privilegiado em VEJA. Mesmo se, enlouquecido, o jornalista quisesse fazê-lo, não teria poderes, como não tem agora, nem nunca teve, de dispor da capa ou das páginas amarelas da revista. Seu único e singelo objetivo era informar-se. Claro está que se não houve o principal – uma tentativa de negociação – também não houve o secundário – a expulsão do gabinete. Em todo caso, registre-se que o cinematográfico desfecho pretendido pelo senador é outra mentira, MENTIRA, MEN-TI-RA. A entrevista transcorreu em clima de cordialidade.

Como encerrar este artigo? Primeira hipótese: dizer que sujar páginas por sujar páginas, perito mesmo na especialidade é o ex-presidente – no caso, sujar as páginas da história do Brasil. Sentencioso demais. Se os leitores permitem a falta de modéstia, o colunista gostaria na verdade é de congratular-se consigo mesmo. Ao contrário de Sarney, ele não tem Collor como defensor. Tem como acusador. É uma honra.

•••

Por falar em fisionomia, e para arejar o ambiente com caso oposto ao da carranca oferecida por Collor a Simon, a fisionomia do momento, no Brasil, é a do vice-presidente José Alencar. O fato de ele estar impelido a correr de internação em internação, e de operação em operação, dentro daquilo que se convencionou chamar de "luta" contra o câncer, é o de menos. Como ele próprio alega, não dispõe de alternativa. Muitos também o fariam – e fazem –, especialmente quando têm recursos para pagar o tratamento. O que impressiona é a serenidade com que enfrenta o infortúnio, manifestada no sorriso e no jeito bonachão que estampa nas entradas e saídas do hospital. Seu comportamento, na mais decisiva das horas que espera um mortal, cativou o país. A ele seria dedicada a coluna desta semana, se o homem das Alagoas não se interpusesse no caminho. Fica o registro.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A escala lulista de valores

Editorial
O Estado de S. Paulo, 19 de junho de 2009

O presidente Lula é um político que não tem princípios. Tem fins. Dele só se poderia esperar, portanto, que saísse em defesa do presidente do Senado, José Sarney, engolfado pela onda de escândalos na instituição que comanda pela terceira vez. É notório que Lula deve a alma, como se diz, a Sarney, seu aliado firme desde a campanha de 2002, e conta com ele e a sua patota para adquirir em 2010 a adesão do PMDB à candidatura da ministra Dilma Rousseff - a "sacerdotisa do serviço público", como o senador a endeusou em um comício. Além disso, desde que alcançou o Planalto, Lula tem demonstrado uma coerência impecável: sempre que se viu obrigado a escolher entre a ética e a conveniência, jamais desapontou os que apostavam que ficaria com esta em detrimento daquela. Ainda há pouco, quando rebentou na Câmara a história da farra das passagens aéreas, Lula deu de ombros. "Sempre foi assim", desdenhou, como que repetindo o comentário, no auge da crise do mensalão, em 2005, de que o caixa 2 é "usado sistematicamente" por todos os partidos.

Mesmo que novamente ele tenha confirmado o retrospecto, suas palavras chamam a atenção por desnudar uma vocação insanável para a desmoralização das instituições. Se as posições do presidente não surpreendem, os termos que lhe ocorrem para manifestá-las retratam uma mentalidade à qual pode se aplicar, no sentido mais raso, o que já considerou "a evolução da espécie humana" (para justificar a teoria de que, com a idade, os esquerdistas migram para o centro). Na política, ele não perde para ninguém em matéria de capacidade adaptativa. Vinte anos atrás, quando fazia questão de se exibir como o demolidor de "tudo isso que está aí", dizia que Sarney era "grileiro" e "grande ladrão". Hoje, quando inebriado pelas delícias do poder só pensa em desfrutá-las pelo maior tempo possível, ensina que "Sarney tem história suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum". Pelo visto, na atual escala lulista de valores, as pessoas incomuns devem desfrutar de um salvo-conduto que lhes permita afrontar, se não a lei, o decoro pelo qual, dada a sua condição, deveriam ser as primeiras a zelar.

O presidente fez coro com o senador bom companheiro que foi à tribuna invocar a "correção de uma vida austera, de família bem composta" como uma espécie de manto protetor contra críticas e notícias constrangedoras - como o recebimento indevido, meses a fio, de R$ 3.800,00 de auxílio-moradia (o que primeiro negou e depois disse desconhecer) ou o fato de ter sete parentes e dois afilhados políticos incluídos por baixo dos panos na folha de pagamento do Senado. Lula também ecoou a versão sarneyana de que é vítima de "setores radicais da mídia" e outros supostos interessados em enfraquecer o Legislativo, ao desqualificar como "denuncismo" a exposição objetiva de indecências que os políticos e seus parceiros na alta burocracia do Congresso escondiam nos porões. O caso escabroso dos atos administrativos secretos, já na casa dos 650, por exemplo, foi revelado por dois repórteres deste jornal que tiveram acesso às descobertas de uma comissão de sindicância do próprio Senado.

Impermeável à realidade e com a sua famosa quase-lógica, Lula perguntou retoricamente "o que ganharia o Senado em ter uma contratação secreta, se tem mais de 5 mil funcionários transitando por aqueles corredores". Talvez ele devesse procurar a resposta com o notório Agaciel Maia, que recentemente teve de se demitir da direção-geral da Casa para a qual foi nomeado por Sarney há 14 anos. Lula atacou a imprensa por "todo dia arrumar uma vírgula a mais" no noticiário da esbórnia. Para ele, com o seu amoralismo, pode parecer uma vírgula. Para a opinião pública, é um ponto de exclamação. Ressalte-se que nada do que se veiculou sobre as mazelas das Casas do Congresso foi desmentido, o que torna dispensável a advertência do presidente sobre o risco de a imprensa ser "desacreditada". Ele se disse preocupado com as denúncias, porque "depois não acontece nada". Não venha o presidente do mensalão ofender a sensibilidade dos brasileiros ao sugerir que, em razão da impunidade - assunto sobre o qual ele pode falar de boca cheia -, melhor faria a mídia se o imitasse, compactuando, nesse caso pelo silêncio, com os abusos dos poderosos.

terça-feira, 5 de maio de 2009

As denuncias de Ana Julia

A governadora do Pará denuncia as pressões de Greenhalgh e Gilmar Mendes a favor de Daniel Dantas


Leandro Fortes
Carta Capital, 4 de maio de 2009

Em janeiro de 2008, a governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, foi surpreendida por um telefonema de um antigo companheiro do PT, o ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh. De São Paulo, Greenhalgh manteve uma conversa evasiva e pediu uma audiência com a governadora. De pronto, Ana Júlia convidou o correligionário para um almoço na residência oficial, em Belém. O que deveria ter sido uma conversa entre velhos amigos tornou-se um encontro constrangedor. Greenhalgh levou a tiracolo o empresário Carlos Rodenburg, então vice-presidente do Banco Opportunity e ex-cunhado do banqueiro Daniel Dantas. Enquanto saboreava um peixe da região, a governadora haveria de descobrir um segredo que só seria revelado ao País dali a seis meses, após a Operação Satiagraha: Greenhalgh, antigo defensor de trabalhadores rurais e presos políticos da ditadura militar, havia se tornado advogado e lobista de Dantas. O petista intercedeu a favor do banqueiro e de suas atividades pecuárias no Pará.

Na quarta-feira 29, Ana Júlia Carepa recebeu CartaCapital no escritório da representação do estado do Pará, no Setor Comercial Sul de Brasília. A governadora não consegue esconder a decepção de ver o companheiro Greenhalgh do outro lado da trincheira e denuncia uma conspiração, segundo ela, montada pela turma de Dantas para tentar passar a imagem de que o Pará é uma terra sem lei.

CartaCapital: De que maneira o ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh se aproximou da senhora para interceder pelo Opportunity?
Ana Júlia Carepa:
O Greenhalgh é um companheiro por quem sempre tive muito respeito. Ele telefonou para mim, de São Paulo, e disse que precisava falar comigo, que viria a Belém, em janeiro de 2008. Eu falei “pois não, meu companheiro”. Quando ele chegou, percebi que tinha vindo com Rodenburg (Carlos Rodenburg, do Opportunity). Fiquei surpresa.

CC: Qual foi a sua reação?
AJC:
Eu me virei e disse a ele (Rodenburg): “Já o conheço de situações bem menos confortáveis do que esta aqui”. Eu o conhecia da CPI dos Correios, ele estava lá acompanhando o Daniel Dantas, a quem desafiei muitas vezes e acusei de subjugar os fundos de pensão, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, para manter o controle acionário da Brasil Telecom. Mesmo assim, seguimos para a residência oficial e fomos almoçar.

CC: Havia mais alguém nesse almoço, além de vocês três?
AJC:
Sim, o meu então chefe de gabinete, João Cláudio Arroio.

CC: O que Greenhalgh e Rodenburg queriam?
AJC:
Eles queriam “vender” a imagem da empresa (Agropecuária Santa Bárbara) e reclamar que tinham recebido uma notificação de crime ambiental da Secretaria de Meio Ambiente do Pará. Perguntaram se era uma coisa específica para eles. Eu disse que não, pois a certificação ambiental é obrigação de todo mundo. Somos cobrados por isso. Greenhalgh queria saber especificamente sobre esse documento, do qual o governo do Pará não abre mão. Disse que se eles precisassem de mais algum prazo para levantar a documentação não seria problema. Mas o documento seria mantido. Disse que a única exigência que o estado faz para qualquer empreendedor do Pará é que trabalhe dentro da legalidade, dentro das leis ambientais, e por isso mesmo houve a notificação.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Enquanto a morte não chega

Miguel Mora

Folha de S. Paulo, 6 de abril de 2009
 

"Não sei se estou meio morto ou meio vivo. O que sei é que a ameaça dos Casaleses [clã mafioso] me converteu em uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais egoísta. Sinto ódio dos amigos que me abandonaram quando o livro saiu, entre uma partida de Playstation e uma da Liga Fantástica. Apenas saio de casa. Não posso usar cartão de crédito. Vivo sob escolta 24 horas por dia. Deixei de ser um homem -virei uma equipe. Os rapazes são ótimos, são napolitanos como eu. Praticamos esportes juntos, lutamos boxe no ginásio... Mas sinto falta de Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem na estação... O tempo se deformou, os minutos são estranhos, cada movimento banal requer um dia inteiro. E não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar, comprar uma geladeira. Ontem fomos ao supermercado, e foi patético. Os ‘carabinieri’ [policiais militares] em torno do carrinho, todos opinando sobre a pasta que eu devia comprar. As pessoas se assustaram; nos abriram um espaço no caixa para que fôssemos embora logo. Quando saímos, eu disse aos rapazes: ‘Não vamos voltar’.’

Assim é a vida de Roberto Saviano. Uma vida que não é vida, uma vida-morte, uma espécie de morte em vida.

O sucesso de ‘Gomorra’ [ed. Bertrand Brasil], um dos maiores fenômenos da história italiana, converteu-se numa maldição para seu autor.

Reconhecimento, prêmios e elogios, fama, dinheiro e viagens, nada disso compensa o outro lado da moeda: Saviano foi difamado, cuspido e insultado pelos jovens de sua própria terra, abandonado por seus amigos, condenado à morte.

E hoje vive agachado, rodeado de armas e de policiais, em alta velocidade e à meia-voz.

O Sistema

Tem apenas 29 anos, mas percebe-se que já não é mais aquele rapaz que gostava de contar piadas e que ia conquistar o mundo quando formou-se em filosofia pela Universidade Federico 2º, em Nápoles.

Foi naquela época que Saviano começou a escrever seu primeiro relato real, intitulado ‘La Terra Padre’ [A Terra Pai]. Naturalmente, o tema era a Camorra.

Conforme descrita por Saviano, a máfia napolitana, ou, melhor, da região da Campanha, deixou de ser o que era aos olhos de muitas pessoas -um grupo de bandidos dirigidos por tipos mais ou menos honrados que traficam e assassinam, mas que, no fundo, protegem uma população abandonada à própria sorte (embora esta última parte continue sendo verdade).

Ela passou a ser O Sistema, uma poderosa holding criminal que, de acordo com o último censo feito pelo chefe dos ‘carabinieri’ de Nápoles, o general Gaetano Maruccia [leia entrevista na pág. 6], responsável pela segurança de Saviano, ‘tem pelo menos 80 clãs e mais de 3.000 filiados armados, aos quais se soma uma extensa rede de colaboradores’.

Quando Saviano começou a escrever, era um jovem feliz, embora trabalhasse sem parar.

‘Eu tinha quatro ou cinco trabalhos: numa pizzaria, dando aulas de reforço para crianças à tarde, como pedreiro ocasional no campo de Caserta, bolsista de doutorado em história contemporânea e colaborador de periódicos e sites.’

Levou apenas alguns meses para juntar os 11 relatos verídicos que formam ‘Gomorra’.

Pouco depois, o manuscrito se converteu em livro, graças ao faro dos editores da Mondadori. ‘Publicaram meu primeiro relato na revista ‘Nuovi Argumenti’ (em abril de 2005), e depois fecharam comigo um contrato de promessa jovem. Me deram 5.000 de adiantamento por 5.000 cópias’, recorda Saviano.

Logo depois esse contrato deu lugar a outro, com valores estelares. ‘Em maio de 2006, quando o livro finalmente saiu nas livrarias, eu era o cara mais feliz do mundo. Vivi os cinco melhores meses de minha vida. Eu era um homem livre. Ganhei o Prêmio Viareggio, comecei a escrever no ‘La Repubblica’ e no ‘Espresso’, a falar na televisão... E, de repente, tudo parou. Tudo o que aconteceu desde então eu não vivi.’

Chegaram as primeiras ameaças dos Casaleses, o clã do povoado onde Saviano cresceu, Casal di Principe. E eram inequívocas. Ele teria que morrer. Não apenas sabia demais e tinha contado o que sabia, dando nomes e sobrenomes, relacionando cada informação com sua fonte, como também, e sobretudo, o livro havia chegado a pessoas demais.

A Camorra estava na boca de todos. Já não era o tradicional mal menor napolitano (fisiológico, à margem da lei). Era um câncer internacional.

Os juízes antimáfia levaram a advertência a sério. Era preciso protegê-lo, e rápido. No dia 13 de outubro de 2006, o ministro do Interior, Giuliano Amato, decidiu que Saviano deveria viver escoltado.

‘Lembro-me do dia em que os policiais militares vieram me buscar em casa para me levar ao quartel. Os vizinhos brincavam: ‘Robbè, finalmente estão prendendo você!’. Amato foi de uma sensibilidade extraordinária. Disse que o Estado tinha que me proteger, porque por mim defendia a liberdade de expressão, um princípio constitucional. Isso me converteu em símbolo da liberdade de expressão. Sempre o agradecerei por isso.’

Dois anos e quatro meses se passaram. Seus velhos amigos se afastaram dele. Sua antiga namorada o deixou. Sua família se dispersou ainda mais do que já estava dispersa (seus pais se separaram em pouco tempo).

E Saviano se culpa por tudo isso. Diz que lamenta por ‘ter destruído meu mundo por um livro e ter feito mal a todos os que me queriam bem’.

Sua vida está ‘suspensa, cancelada, detida’. É um destino quase irreversível.

Por questões de segurança, foram necessárias semanas para marcar o encontro para esta entrevista. A primeira tentativa foi adiada porque os níveis de alerta dispararam.

Um primo de Sandokan [líder mafioso] chamado Carmine Schiavone e colaborador com a Justiça (um ‘pentito’, ou arrependido), revelou que a Camorra tinha plano e data marcada. Iam matar Saviano antes do fim do ano, colocando uma bomba no caminho que ele percorreria na rodovia A1, que liga Roma a Nápoles.

Mas o nível de alerta diminuiu. Schiavone -que, mais do que um arrependido, parece ser o porta-voz da Camorra- declarou que seus ex-comparsas tinham decidido esperar que os holofotes fossem um pouco apagados antes de matá-lo. Com mais calma.

Finalmente pudemos marcar o encontro.

‘Vão acabar comigo’

Com a ajuda de sua amabilíssima assistente, Manuela, programamos ir juntos a Nápoles, fazer uma refeição com Saviano e conhecer seu amigo, o general Maruccia, chefe do Comando Provincial dos Carabinieri de Nápoles.

É 16 de janeiro, a manhã é bela e gelada, e os dois carros blindados chegam pontuais e muito juntos, deslizando com elegância italiana.

Saviano está sentado no primeiro carro, no banco de trás, à direita. As sirenes deixam de tocar, e os carros param. Cinco policiais descem e vasculham a rua com seus óculos escuros e seus ‘walkie-talkies’. Saviano continua sentado dentro do Lancia cinza.

Nos cumprimentamos e o fotógrafo começa a fazer imagens. Os guardas permanecem impassíveis. Estão acostumados. A esta altura, já foram fotografados 2.000 vezes e sabem que a Camorra conhece seus rostos milimetricamente. Mesmo assim, suas expressões não traem medo algum.

Saviano faz um apanhado do armamento: os Casaleses têm cem quilos de TNT e um arsenal de metralhadoras e pistolas. ‘Sei que vão acabar comigo. Cedo ou tarde, vão fazê-lo.’"


 

O homem blindado

Leia a seguir entrevista com Roberto Saviano.

PERGUNTA - Quer dizer que é assim sua vida atual?

ROBERTO SAVIANO -
É assim. Eles vão aos lugares antes de mim. Chegam primeiro, controlam tudo, e depois eu vou. Para qualquer coisa. Se é preciso comprar uma geladeira, por exemplo, eles vão na frente, depois eu vou, a olho, escolho o modelo, e então vamos a outra loja diferente para comprá-la. Nunca voltamos ao mesmo lugar.

PERGUNTA - O sr. sempre teve cinco guardas?

SAVIANO -
Comecei com dois, depois passaram a ser cinco.

PERGUNTA - O sr. muda muito de casa?

SAVIANO -
Sempre que observamos algum detalhe diferente. Por exemplo, se há uma obra em andamento num edifício próximo e sabemos que há pessoas de Nápoles trabalhando ali que já foram julgadas, eles me mudam de casa. Basta algo assim.

PERGUNTA - Eles o escoltam também dentro de casa?

SAVIANO -
Não, normalmente não entram em casa. Esperam atrás da porta. Vinte e quatro horas por dia.

PERGUNTA - Parecem tranquilos.

SAVIANO
- Têm muitos anos de experiência no combate à máfia. Já protegeram personalidades, juízes e ‘supertestemunhas’. Maruccia os escolheu.

PERGUNTA - Com tanto contato, vocês já devem ter virado amigos.

SAVIANO -
Claro, são magníficos. E isso me obriga a seguir adiante, a não desistir. Devo isso a eles, que me defendem.

PERGUNTA - O sr. encontra amigos em casa?

SAVIANO -
Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi muito doloroso entender isso. É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem ninguém parece estar à altura trágica de sua situação...

PERGUNTA - A normalidade se torna absurda.

SAVIANO -
Sim, as propostas das pessoas normais, falar de coisas bobas, sair para tomar uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado num turbilhão no qual existia apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas nos livros. Fiz uma espécie de descida aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em situações mais graves, conseguiu sobreviver.

PERGUNTA - E quais autores o ajudaram?

SAVIANO -
Os perseguidos pelos soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960], Varlam Shalamov [1907-82].... e, mais recentemente, Anna Politkovskaia [1958-2006], que acabou de forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.

PERGUNTA - E, tantas vezes, com a cumplicidade do governo.

SAVIANO -
Sim. Estou convencido de que, na Itália, quando se luta contra determinados poderes, o destino das pessoas está selado. Não necessariamente de forma trágica, embora muitas vezes seja assim.

PERGUNTA - Deixando o sr. fora do circuito?

SAVIANO -
Eles o caluniam, dizem que você está se exibindo, que está procurando publicidade. É isso que é incrível, porque se cria um círculo vicioso que impede que você tenha a palavra. E o que as máfias temem é justamente isso: a atenção.

PERGUNTA - Quando o sr. escreveu o livro, imaginou que aconteceria algo assim?

SAVIANO -
Eu era um sujeito jovem que lia, discutia e escrevia.. De repente me vi no meio desta guerra. Pensava que teria problemas, mas não tão graves. Agora não posso pôr os pés em Nápoles. Esta viagem é a primeira que faço em um mês. Todas as cidades me convidam, menos a minha. Apesar de ‘Gomorra’ ser o livro mais vendido da história da cidade.

PERGUNTA - Soa irônico, é verdade.

SAVIANO -
Restam poucos focos de resistência ali, poucas forças sadias. Uma delas é Marotta, o filósofo; outra, o cardeal Sepe. E o bispo Raffaele Nogaro, em Caserta, que leva adiante o trabalho do dom Peppino Diana, o padre de Casal di Principe que foi assassinado. É curioso que as instituições religiosas façam o trabalho do Estado. Esse é o drama do sul da Itália.

PERGUNTA - A crise econômica vai agravar a situação?

SAVIANO -
Com certeza. E isso vai permitir ao dinheiro do crime entrar em todo lugar. [Devemos estar por volta do quilômetro 80. Faltam 150 para Nápoles. Não há muito tráfego na estrada e o automóvel voa, como os dos videogames. Os que andam pela esquerda nos acompanham em alta velocidade. ‘Vamos levar pouco mais de uma hora’, informa Saviano. ‘Se os ‘carabinieri’ nos pararem, vamos sorrir.’ É a primeira piada da viagem.] [Parece estar de humor melhor do que estava alguns meses atrás, quando disse que deixaria o país. Mas, à medida que nos aproximamos de Nápoles, vai ficando mais tenso]

PERGUNTA - Na realidade, o sr. vive uma espécie de vida virtual. Como um super-herói ao avesso.

SAVIANO -
Uma vida virtual e blindada. As pessoas me visitam como se eu fosse um doente, me trazem água e açúcar, como dizemos na Itália. O que me dá satisfação são coisas virtuais, como o Facebook -recebo milhares de mensagens de jovens. Isso é precioso. Neste país ainda há pessoas que têm vontade de se expressar.

PERGUNTA - O sr. sente mais esse apoio que o da classe intelectual?

SAVIANO -
O papel do escritor mudou de repente, e alguns se sentiram assediados. Muitas pessoas exigem que os escritores se pronunciem. Antes achavam que os livros não podiam mudar as coisas; hoje já não se pode afirmar isso. Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas. O poder enorme que tem o leitor que escolhe ler um livro... Talvez ele não se dê conta disso. Eu, sim. Os leitores, e não o livro, são a chave de minha história. Se ninguém tivesse lido meu livro, a Camorra teria se importado muito menos com ele.

PERGUNTA - A jornalista do ‘Il Mattino’ Rosaria Capacchione, autora de ‘L’Oro della Camorra’ [O Ouro da Camorra], também vive sob escolta.

SAVIANO -
Sim, é um caso parecido com o meu. A diferença é que ela ainda vive e trabalha em Nápoles. Consideram-me um palhaço porque escrevo fora da cidade. Já ela é respeitada.

PERGUNTA - [O jogador de futebol] Cannavaro já disse que essas coisas da máfia é melhor não espalhar...

SAVIANO -
A máfia faz todo mundo sentir-se culpado. Alguns se sentem culpados porque sabem pouco, outros, porque pensam muito. Cannavaro se equivoca em uma coisa.. Não é um problema local, é global: eles investem em todo lugar.

PERGUNTA - Muitos napolitanos pensam como ele.

SAVIANO -
Sim, um dia um advogado gritou para mim: ‘Sou eu quem paga sua escolta!’. E os vizinhos de um apartamento que tive se organizaram e pagaram vários meses de meu aluguel adiantados, para não me terem ali.

[Nápoles aparece no horizonte, grande e belíssima. ‘Você vê Nápoles e depois morre’, reza o ditado. Uma frase que não parece oportuno citar quando o carro estaciona no quartel da polícia. Por sorte a pizzaria fica perto dali, na rua de Toledo.]

[Os livros são a grande paixão de Saviano, desde pequeno. Seu rosto só se ilumina quando fala de literatura e quando chega a pizza fumegante, verdadeiramente napolitana: mussarela de búfala, tomates cereja, crocante e macia.]

[Saviano a corta em triângulos e sopra por cima, fazendo círculos, como um menino. Então conta que tirou de ‘Soldados de Salamina’, de Javier Cercas, a inspiração para escrever seu ‘relato real’. E que gostaria de encontrar Mario Vargas Llosa.] É um escritor fabuloso, e, como Cervantes, conhece a alma napolitana. Eu o escolheria como padrinho de meu retorno público.

Seria maravilhoso se Marotta organizasse sua vinda aqui no Instituto, porque foi essa grande tradição laica e civil de Nápoles que me ajudou a escrever o livro. Os mestres dos revolucionários franceses eram napolitanos. Aqui nasceram as ideias de liberdade na Europa.

E não foi por acaso que Giordano Bruno morreu na fogueira, e sim porque tentou retornar a Nápoles. Tinha a hospitalidade do mundo inteiro, mas preferiu voltar. Foi detido em Veneza e o queimaram.

Alguns me dizem: ‘Fale da grande cultura, e não da vida ruim’. Caravaggio é a beleza, e essa beleza me dá forças para relatar o mal. Se não existisse essa beleza, não haveria esperança de sair. Mas, se usamos a beleza para encobrir o mal, ela se converte em disfarce.

Estive com Salman Rushdie em Nova York. Cheguei com a escolta, ele se aproximou com Ian McEwan, cada um me pegou por um braço e eles me levaram ao carro. Eu mal conseguia acreditar.

Salman me disse o que eu sinto. Que muitas pessoas pensam que, para um escritor, viver ameaçado é algo glamouroso. Que ninguém vai me entender, exceto algum político (ele diz que apenas Margaret Thatcher o entendia). Que ninguém vai acreditar que o que você mais deseja é tomar um café num bar. Que a única forma de reconquistar sua liberdade é decidir fazê-lo. Que o importante é manter sua cabeça livre e saber quando você quer voltar a ser livre. Que eu devo procurar um bom exílio...

Mas isso é algo que preciso pensar bem, porque começar do zero é difícil.

[Estamos de volta a Roma. Saviano escapuliu na metade da tarde de sexta-feira para passar o fim de semana com sua ‘mamma’ (versão oficial) e hoje ficamos na sede de sua editora, a Mondadori. Finalmente, a boa notícia: Saviano está escrevendo outra vez. Tem dois projetos em andamento. Um é um relato verídico sobre o crime organizado internacional. O outro falará dele próprio, do homem solitário. Será quase uma vendeta.]

[‘Tenho que canalizar de alguma maneira o rancor que sinto pelos amigos que me abandonaram quando escrevi ‘Gomorra’. Sinto ódio por eles. Entendo que a vendeta não é uma arte nobre, mas me deixaram no chão quando eu mais precisava deles. E a amizade é o contrário disso, não?’]

PERGUNTA - Com sua família as coisas vão melhor?

SAVIANO -
Quando meus pais se separaram, meu irmão e eu ficamos com nossa mãe, que é química e vivia viajando a congressos. Estudamos num colégio de Caserta. Víamos meu pai, que é o médico da cidade, nos finais de semana.

Arruinei a vida de todos que me eram próximos. Meu irmão foi trabalhar no norte. E não tenho relações com meu pai.

PERGUNTA - Dizem que tudo vem da infância. O que o sr. se recorda da Camorra daquela época?

SAVIANO -
Meu pai me levava para visitar doentes nos povoados rurais de Caserta. Muitas vezes víamos cenas apocalípticas. Eu me lembro das búfalas mortas boiando no rio Volturno. Quando ficavam velhas, jogavam-nas na água, para economizar balas..

Lembro que pescávamos percas marinhas no rio, porque, de tanto a Camorra roubar a areia do rio para fazer cimento, em vez de o rio desembocar no mar, a água salgada penetrava em seu leito.

Meu pai sempre teve medo da Camorra, mas nunca se rebelou. Via os carros luxuosos deles e sentia raiva. Mas não dizia nada, nunca.

Sempre senti essa asfixia. Tudo ia mal, mas ninguém podia fazer nada. Sempre foi assim. ‘Se você é ‘furbo’ (malandro), pode aproveitar’, diziam. Se você pensa que pode mudar alguma coisa, é um louco.

A Camorra sabe que só tem problemas quando mata demais. Ela ajuda as famílias com filhos deficientes.

PERGUNTA - Quer dizer que não é apenas um Estado, mas um Estado de Bem-Estar Social.

SAVIANO -
Mas o bem-estar social da Camorra não é um direito, é um privilégio. Eles podem tirá-lo de você.

PERGUNTA - Quando decidiu ser escritor?

SAVIANO -
Aos 14 ou 15 anos. Eu sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue -você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.

A cultura é o que realmente salva nossa vida; minha terra me deu isso de presente. A ‘Anábasis’ de Xenofonte se parece comigo.

Para escrevê-la, ele se tornou mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia: ‘Não confia em quem escreve sobre coisas não vividas’.

PERGUNTA - Mas, para o sr., esse livro apenas estragou sua vida.

SAVIANO -
Agora vivo encerrado em ambientes fechados; ando de um cômodo a outro, às vezes dou socos nas paredes. É uma meia morte, ou uma meia vida.

PERGUNTA - Ela acabará um dia...

SAVIANO -
Quem sabe minha libertação chegue e eu possa passear novamente na praça do Plebiscito quando eu for velho, ou usando uma peruca loira.

Mas não acredito. Nápoles não só não esquece como sente rancor. ‘Gomorra’ arrancou a tampa que fechava tantos silêncios. Não me perdoarão nunca. Dizem: ‘Você está ganhando dinheiro com a ‘monnezza’ (o lixo), hein?’, ou ‘pare de escrever porcaria, ‘buffone’.

Os guarda-costas se indignam mais do que eu, e tenho que dizer a eles que têm que me defender dos ataques físicos, não dos espirituais.

PERGUNTA - Orhan Pamuk deixou a Turquia.

SAVIANO -
A Europa e o México são hoje os lugares onde os escritores correm mais risco. Mataram com um tiro na cabeça o autor [Georgi Stoev] de ‘BG Godfather’ [Chefão Búlgaro]. Também mataram Politkovskaia e a jornalista que retomou seu trabalho... Dá medo neles o autor que consegue fazer sua mensagem extrapolar seu território.

PERGUNTA - O sr. pensa muito em sua própria morte?

SAVIANO -
Bastante. Me dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas.. Sei que me farão pagar -está escrito.

Convivo tanto com isso que já não me assusta mais. Quando chegarem, porque chegarão, será dentro de algum tempo. A tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles, seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo que é exagero, continuarão com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço.

Diziam isso a Falcone. E ele disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não se defendia das calúnias porque elas se defendem sozinhas, e que a máfia lhe faria um favor matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e que dizia a verdade..

PERGUNTA - Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra e a verdade, e são mais poderosas que as balas.

SAVIANO -
Contar a verdade me ajudou a afastar as sombras que eu carregava por dentro e que se projetavam sobre mim. Eles venceram em parte, por me fazerem viver assim.

Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a Camorra. Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças.

A íntegra deste texto saiu no ‘El País’. Tradução de Clara Allain"



Isto é a Camorra

"Desde 1979, a Camorra comete em média um assassinato a cada 2,5 dias. Tem faturamento de bilhões de euros anuais, controla parte do tráfico de cocaína na Europa, domina o negócio da extorsão, da agiotagem, da coleta de lixo e do transporte de dejetos tóxicos.

Ela controla crianças de 11 anos, que atuam como sentinelas, abocanha grandes contratos públicos para os quais são feitas licitações na região da Campanha -onde fica Nápoles.

A Camorra também lava dinheiro no setor da construção civil da Espanha, compra políticos, faz prefeitos, administra direta ou indiretamente 40% do comércio de Nápoles, fabrica roupas no mercado negro para grandes empresas, dirige a importação e distribuição de mercadorias falsificadas vindas da China e domina o porto da cidade."



Isto é ‘Gomorra’

"O livro ‘Gomorra’, publicado na Itália pela editora Mondadori, vendeu mais de 2 milhões de exemplares em seu país e foi traduzido para mais de 30 línguas. Lançado no Brasil no final do ano passado pela Bertrand Brasil (trad. Elaine Niccolai, 350 págs., R$ 39), já vendeu no país 37 mil exemplares.

A adaptação cinematográfica, dirigida por Matteo Garrone, recebeu o Grande Prêmio em Cannes em 2008 e foi vista por 65 mil pessoas nos cinemas brasileiros. Está disponível nas locadoras (Paris Filmes)."

Enquanto a morte não chega

Miguel Mora

Folha de S. Paulo, 6 de abril de 2009
 

"Não sei se estou meio morto ou meio vivo. O que sei é que a ameaça dos Casaleses [clã mafioso] me converteu em uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais egoísta. Sinto ódio dos amigos que me abandonaram quando o livro saiu, entre uma partida de Playstation e uma da Liga Fantástica. Apenas saio de casa. Não posso usar cartão de crédito. Vivo sob escolta 24 horas por dia. Deixei de ser um homem -virei uma equipe. Os rapazes são ótimos, são napolitanos como eu. Praticamos esportes juntos, lutamos boxe no ginásio... Mas sinto falta de Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem na estação... O tempo se deformou, os minutos são estranhos, cada movimento banal requer um dia inteiro. E não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar, comprar uma geladeira. Ontem fomos ao supermercado, e foi patético. Os ‘carabinieri’ [policiais militares] em torno do carrinho, todos opinando sobre a pasta que eu devia comprar. As pessoas se assustaram; nos abriram um espaço no caixa para que fôssemos embora logo. Quando saímos, eu disse aos rapazes: ‘Não vamos voltar’.’

Assim é a vida de Roberto Saviano. Uma vida que não é vida, uma vida-morte, uma espécie de morte em vida.

O sucesso de ‘Gomorra’ [ed. Bertrand Brasil], um dos maiores fenômenos da história italiana, converteu-se numa maldição para seu autor.

Reconhecimento, prêmios e elogios, fama, dinheiro e viagens, nada disso compensa o outro lado da moeda: Saviano foi difamado, cuspido e insultado pelos jovens de sua própria terra, abandonado por seus amigos, condenado à morte.

E hoje vive agachado, rodeado de armas e de policiais, em alta velocidade e à meia-voz.

O Sistema

Tem apenas 29 anos, mas percebe-se que já não é mais aquele rapaz que gostava de contar piadas e que ia conquistar o mundo quando formou-se em filosofia pela Universidade Federico 2º, em Nápoles.

Foi naquela época que Saviano começou a escrever seu primeiro relato real, intitulado ‘La Terra Padre’ [A Terra Pai]. Naturalmente, o tema era a Camorra.

Conforme descrita por Saviano, a máfia napolitana, ou, melhor, da região da Campanha, deixou de ser o que era aos olhos de muitas pessoas -um grupo de bandidos dirigidos por tipos mais ou menos honrados que traficam e assassinam, mas que, no fundo, protegem uma população abandonada à própria sorte (embora esta última parte continue sendo verdade).

Ela passou a ser O Sistema, uma poderosa holding criminal que, de acordo com o último censo feito pelo chefe dos ‘carabinieri’ de Nápoles, o general Gaetano Maruccia [leia entrevista na pág. 6], responsável pela segurança de Saviano, ‘tem pelo menos 80 clãs e mais de 3.000 filiados armados, aos quais se soma uma extensa rede de colaboradores’.

Quando Saviano começou a escrever, era um jovem feliz, embora trabalhasse sem parar.

‘Eu tinha quatro ou cinco trabalhos: numa pizzaria, dando aulas de reforço para crianças à tarde, como pedreiro ocasional no campo de Caserta, bolsista de doutorado em história contemporânea e colaborador de periódicos e sites.’

Levou apenas alguns meses para juntar os 11 relatos verídicos que formam ‘Gomorra’.

Pouco depois, o manuscrito se converteu em livro, graças ao faro dos editores da Mondadori. ‘Publicaram meu primeiro relato na revista ‘Nuovi Argumenti’ (em abril de 2005), e depois fecharam comigo um contrato de promessa jovem. Me deram 5.000 de adiantamento por 5.000 cópias’, recorda Saviano.

Logo depois esse contrato deu lugar a outro, com valores estelares. ‘Em maio de 2006, quando o livro finalmente saiu nas livrarias, eu era o cara mais feliz do mundo. Vivi os cinco melhores meses de minha vida. Eu era um homem livre. Ganhei o Prêmio Viareggio, comecei a escrever no ‘La Repubblica’ e no ‘Espresso’, a falar na televisão... E, de repente, tudo parou. Tudo o que aconteceu desde então eu não vivi.’

Chegaram as primeiras ameaças dos Casaleses, o clã do povoado onde Saviano cresceu, Casal di Principe. E eram inequívocas. Ele teria que morrer. Não apenas sabia demais e tinha contado o que sabia, dando nomes e sobrenomes, relacionando cada informação com sua fonte, como também, e sobretudo, o livro havia chegado a pessoas demais.

A Camorra estava na boca de todos. Já não era o tradicional mal menor napolitano (fisiológico, à margem da lei). Era um câncer internacional.

Os juízes antimáfia levaram a advertência a sério. Era preciso protegê-lo, e rápido. No dia 13 de outubro de 2006, o ministro do Interior, Giuliano Amato, decidiu que Saviano deveria viver escoltado.

‘Lembro-me do dia em que os policiais militares vieram me buscar em casa para me levar ao quartel. Os vizinhos brincavam: ‘Robbè, finalmente estão prendendo você!’. Amato foi de uma sensibilidade extraordinária. Disse que o Estado tinha que me proteger, porque por mim defendia a liberdade de expressão, um princípio constitucional. Isso me converteu em símbolo da liberdade de expressão. Sempre o agradecerei por isso.’

Dois anos e quatro meses se passaram. Seus velhos amigos se afastaram dele. Sua antiga namorada o deixou. Sua família se dispersou ainda mais do que já estava dispersa (seus pais se separaram em pouco tempo).

E Saviano se culpa por tudo isso. Diz que lamenta por ‘ter destruído meu mundo por um livro e ter feito mal a todos os que me queriam bem’.

Sua vida está ‘suspensa, cancelada, detida’. É um destino quase irreversível.

Por questões de segurança, foram necessárias semanas para marcar o encontro para esta entrevista. A primeira tentativa foi adiada porque os níveis de alerta dispararam.

Um primo de Sandokan [líder mafioso] chamado Carmine Schiavone e colaborador com a Justiça (um ‘pentito’, ou arrependido), revelou que a Camorra tinha plano e data marcada. Iam matar Saviano antes do fim do ano, colocando uma bomba no caminho que ele percorreria na rodovia A1, que liga Roma a Nápoles.

Mas o nível de alerta diminuiu. Schiavone -que, mais do que um arrependido, parece ser o porta-voz da Camorra- declarou que seus ex-comparsas tinham decidido esperar que os holofotes fossem um pouco apagados antes de matá-lo. Com mais calma.

Finalmente pudemos marcar o encontro.

‘Vão acabar comigo’

Com a ajuda de sua amabilíssima assistente, Manuela, programamos ir juntos a Nápoles, fazer uma refeição com Saviano e conhecer seu amigo, o general Maruccia, chefe do Comando Provincial dos Carabinieri de Nápoles.

É 16 de janeiro, a manhã é bela e gelada, e os dois carros blindados chegam pontuais e muito juntos, deslizando com elegância italiana.

Saviano está sentado no primeiro carro, no banco de trás, à direita. As sirenes deixam de tocar, e os carros param. Cinco policiais descem e vasculham a rua com seus óculos escuros e seus ‘walkie-talkies’. Saviano continua sentado dentro do Lancia cinza.

Nos cumprimentamos e o fotógrafo começa a fazer imagens. Os guardas permanecem impassíveis. Estão acostumados. A esta altura, já foram fotografados 2.000 vezes e sabem que a Camorra conhece seus rostos milimetricamente. Mesmo assim, suas expressões não traem medo algum.

Saviano faz um apanhado do armamento: os Casaleses têm cem quilos de TNT e um arsenal de metralhadoras e pistolas. ‘Sei que vão acabar comigo. Cedo ou tarde, vão fazê-lo.’"


 

O homem blindado

Leia a seguir entrevista com Roberto Saviano.

PERGUNTA - Quer dizer que é assim sua vida atual?

ROBERTO SAVIANO -
É assim. Eles vão aos lugares antes de mim. Chegam primeiro, controlam tudo, e depois eu vou. Para qualquer coisa. Se é preciso comprar uma geladeira, por exemplo, eles vão na frente, depois eu vou, a olho, escolho o modelo, e então vamos a outra loja diferente para comprá-la. Nunca voltamos ao mesmo lugar.

PERGUNTA - O sr. sempre teve cinco guardas?

SAVIANO -
Comecei com dois, depois passaram a ser cinco.

PERGUNTA - O sr. muda muito de casa?

SAVIANO -
Sempre que observamos algum detalhe diferente. Por exemplo, se há uma obra em andamento num edifício próximo e sabemos que há pessoas de Nápoles trabalhando ali que já foram julgadas, eles me mudam de casa. Basta algo assim.

PERGUNTA - Eles o escoltam também dentro de casa?

SAVIANO -
Não, normalmente não entram em casa. Esperam atrás da porta. Vinte e quatro horas por dia.

PERGUNTA - Parecem tranquilos.

SAVIANO
- Têm muitos anos de experiência no combate à máfia. Já protegeram personalidades, juízes e ‘supertestemunhas’. Maruccia os escolheu.

PERGUNTA - Com tanto contato, vocês já devem ter virado amigos.

SAVIANO -
Claro, são magníficos. E isso me obriga a seguir adiante, a não desistir. Devo isso a eles, que me defendem.

PERGUNTA - O sr. encontra amigos em casa?

SAVIANO -
Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi muito doloroso entender isso. É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem ninguém parece estar à altura trágica de sua situação...

PERGUNTA - A normalidade se torna absurda.

SAVIANO -
Sim, as propostas das pessoas normais, falar de coisas bobas, sair para tomar uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado num turbilhão no qual existia apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas nos livros. Fiz uma espécie de descida aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em situações mais graves, conseguiu sobreviver.

PERGUNTA - E quais autores o ajudaram?

SAVIANO -
Os perseguidos pelos soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960], Varlam Shalamov [1907-82].... e, mais recentemente, Anna Politkovskaia [1958-2006], que acabou de forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.

PERGUNTA - E, tantas vezes, com a cumplicidade do governo.

SAVIANO -
Sim. Estou convencido de que, na Itália, quando se luta contra determinados poderes, o destino das pessoas está selado. Não necessariamente de forma trágica, embora muitas vezes seja assim.

PERGUNTA - Deixando o sr. fora do circuito?

SAVIANO -
Eles o caluniam, dizem que você está se exibindo, que está procurando publicidade. É isso que é incrível, porque se cria um círculo vicioso que impede que você tenha a palavra. E o que as máfias temem é justamente isso: a atenção.

PERGUNTA - Quando o sr. escreveu o livro, imaginou que aconteceria algo assim?

SAVIANO -
Eu era um sujeito jovem que lia, discutia e escrevia.. De repente me vi no meio desta guerra. Pensava que teria problemas, mas não tão graves. Agora não posso pôr os pés em Nápoles. Esta viagem é a primeira que faço em um mês. Todas as cidades me convidam, menos a minha. Apesar de ‘Gomorra’ ser o livro mais vendido da história da cidade.

PERGUNTA - Soa irônico, é verdade.

SAVIANO -
Restam poucos focos de resistência ali, poucas forças sadias. Uma delas é Marotta, o filósofo; outra, o cardeal Sepe. E o bispo Raffaele Nogaro, em Caserta, que leva adiante o trabalho do dom Peppino Diana, o padre de Casal di Principe que foi assassinado. É curioso que as instituições religiosas façam o trabalho do Estado. Esse é o drama do sul da Itália.

PERGUNTA - A crise econômica vai agravar a situação?

SAVIANO -
Com certeza. E isso vai permitir ao dinheiro do crime entrar em todo lugar. [Devemos estar por volta do quilômetro 80. Faltam 150 para Nápoles. Não há muito tráfego na estrada e o automóvel voa, como os dos videogames. Os que andam pela esquerda nos acompanham em alta velocidade. ‘Vamos levar pouco mais de uma hora’, informa Saviano. ‘Se os ‘carabinieri’ nos pararem, vamos sorrir.’ É a primeira piada da viagem.] [Parece estar de humor melhor do que estava alguns meses atrás, quando disse que deixaria o país. Mas, à medida que nos aproximamos de Nápoles, vai ficando mais tenso]

PERGUNTA - Na realidade, o sr. vive uma espécie de vida virtual. Como um super-herói ao avesso.

SAVIANO -
Uma vida virtual e blindada. As pessoas me visitam como se eu fosse um doente, me trazem água e açúcar, como dizemos na Itália. O que me dá satisfação são coisas virtuais, como o Facebook -recebo milhares de mensagens de jovens. Isso é precioso. Neste país ainda há pessoas que têm vontade de se expressar.

PERGUNTA - O sr. sente mais esse apoio que o da classe intelectual?

SAVIANO -
O papel do escritor mudou de repente, e alguns se sentiram assediados. Muitas pessoas exigem que os escritores se pronunciem. Antes achavam que os livros não podiam mudar as coisas; hoje já não se pode afirmar isso. Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas. O poder enorme que tem o leitor que escolhe ler um livro... Talvez ele não se dê conta disso. Eu, sim. Os leitores, e não o livro, são a chave de minha história. Se ninguém tivesse lido meu livro, a Camorra teria se importado muito menos com ele.

PERGUNTA - A jornalista do ‘Il Mattino’ Rosaria Capacchione, autora de ‘L’Oro della Camorra’ [O Ouro da Camorra], também vive sob escolta.

SAVIANO -
Sim, é um caso parecido com o meu. A diferença é que ela ainda vive e trabalha em Nápoles. Consideram-me um palhaço porque escrevo fora da cidade. Já ela é respeitada.

PERGUNTA - [O jogador de futebol] Cannavaro já disse que essas coisas da máfia é melhor não espalhar...

SAVIANO -
A máfia faz todo mundo sentir-se culpado. Alguns se sentem culpados porque sabem pouco, outros, porque pensam muito. Cannavaro se equivoca em uma coisa.. Não é um problema local, é global: eles investem em todo lugar.

PERGUNTA - Muitos napolitanos pensam como ele.

SAVIANO - Sim, um dia um advogado gritou para mim: ‘Sou eu quem paga sua escolta!’. E os vizinhos de um apartamento que tive se organizaram e pagaram vários meses de meu aluguel adiantados, para não me terem ali.

[Nápoles aparece no horizonte, grande e belíssima. ‘Você vê Nápoles e depois morre’, reza o ditado. Uma frase que não parece oportuno citar quando o carro estaciona no quartel da polícia. Por sorte a pizzaria fica perto dali, na rua de Toledo.]

[Os livros são a grande paixão de Saviano, desde pequeno. Seu rosto só se ilumina quando fala de literatura e quando chega a pizza fumegante, verdadeiramente napolitana: mussarela de búfala, tomates cereja, crocante e macia.]

[Saviano a corta em triângulos e sopra por cima, fazendo círculos, como um menino. Então conta que tirou de ‘Soldados de Salamina’, de Javier Cercas, a inspiração para escrever seu ‘relato real’. E que gostaria de encontrar Mario Vargas Llosa.] É um escritor fabuloso, e, como Cervantes, conhece a alma napolitana. Eu o escolheria como padrinho de meu retorno público.

Seria maravilhoso se Marotta organizasse sua vinda aqui no Instituto, porque foi essa grande tradição laica e civil de Nápoles que me ajudou a escrever o livro. Os mestres dos revolucionários franceses eram napolitanos. Aqui nasceram as ideias de liberdade na Europa.

E não foi por acaso que Giordano Bruno morreu na fogueira, e sim porque tentou retornar a Nápoles. Tinha a hospitalidade do mundo inteiro, mas preferiu voltar. Foi detido em Veneza e o queimaram.

Alguns me dizem: ‘Fale da grande cultura, e não da vida ruim’. Caravaggio é a beleza, e essa beleza me dá forças para relatar o mal. Se não existisse essa beleza, não haveria esperança de sair. Mas, se usamos a beleza para encobrir o mal, ela se converte em disfarce.

Estive com Salman Rushdie em Nova York. Cheguei com a escolta, ele se aproximou com Ian McEwan, cada um me pegou por um braço e eles me levaram ao carro. Eu mal conseguia acreditar.

Salman me disse o que eu sinto. Que muitas pessoas pensam que, para um escritor, viver ameaçado é algo glamouroso. Que ninguém vai me entender, exceto algum político (ele diz que apenas Margaret Thatcher o entendia). Que ninguém vai acreditar que o que você mais deseja é tomar um café num bar. Que a única forma de reconquistar sua liberdade é decidir fazê-lo. Que o importante é manter sua cabeça livre e saber quando você quer voltar a ser livre. Que eu devo procurar um bom exílio...

Mas isso é algo que preciso pensar bem, porque começar do zero é difícil.

[Estamos de volta a Roma. Saviano escapuliu na metade da tarde de sexta-feira para passar o fim de semana com sua ‘mamma’ (versão oficial) e hoje ficamos na sede de sua editora, a Mondadori. Finalmente, a boa notícia: Saviano está escrevendo outra vez. Tem dois projetos em andamento. Um é um relato verídico sobre o crime organizado internacional. O outro falará dele próprio, do homem solitário. Será quase uma vendeta.]

[‘Tenho que canalizar de alguma maneira o rancor que sinto pelos amigos que me abandonaram quando escrevi ‘Gomorra’. Sinto ódio por eles. Entendo que a vendeta não é uma arte nobre, mas me deixaram no chão quando eu mais precisava deles. E a amizade é o contrário disso, não?’]

PERGUNTA - Com sua família as coisas vão melhor?

SAVIANO - Quando meus pais se separaram, meu irmão e eu ficamos com nossa mãe, que é química e vivia viajando a congressos. Estudamos num colégio de Caserta. Víamos meu pai, que é o médico da cidade, nos finais de semana.

Arruinei a vida de todos que me eram próximos. Meu irmão foi trabalhar no norte. E não tenho relações com meu pai.

PERGUNTA - Dizem que tudo vem da infância. O que o sr. se recorda da Camorra daquela época?

SAVIANO - Meu pai me levava para visitar doentes nos povoados rurais de Caserta. Muitas vezes víamos cenas apocalípticas. Eu me lembro das búfalas mortas boiando no rio Volturno. Quando ficavam velhas, jogavam-nas na água, para economizar balas..

Lembro que pescávamos percas marinhas no rio, porque, de tanto a Camorra roubar a areia do rio para fazer cimento, em vez de o rio desembocar no mar, a água salgada penetrava em seu leito.

Meu pai sempre teve medo da Camorra, mas nunca se rebelou. Via os carros luxuosos deles e sentia raiva. Mas não dizia nada, nunca.

Sempre senti essa asfixia. Tudo ia mal, mas ninguém podia fazer nada. Sempre foi assim. ‘Se você é ‘furbo’ (malandro), pode aproveitar’, diziam. Se você pensa que pode mudar alguma coisa, é um louco.

A Camorra sabe que só tem problemas quando mata demais. Ela ajuda as famílias com filhos deficientes.

PERGUNTA - Quer dizer que não é apenas um Estado, mas um Estado de Bem-Estar Social.

SAVIANO - Mas o bem-estar social da Camorra não é um direito, é um privilégio. Eles podem tirá-lo de você.

PERGUNTA - Quando decidiu ser escritor?

SAVIANO - Aos 14 ou 15 anos. Eu sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue -você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.

A cultura é o que realmente salva nossa vida; minha terra me deu isso de presente. A ‘Anábasis’ de Xenofonte se parece comigo.

Para escrevê-la, ele se tornou mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia: ‘Não confia em quem escreve sobre coisas não vividas’.

PERGUNTA - Mas, para o sr., esse livro apenas estragou sua vida.

SAVIANO - Agora vivo encerrado em ambientes fechados; ando de um cômodo a outro, às vezes dou socos nas paredes. É uma meia morte, ou uma meia vida.

PERGUNTA - Ela acabará um dia...

SAVIANO - Quem sabe minha libertação chegue e eu possa passear novamente na praça do Plebiscito quando eu for velho, ou usando uma peruca loira.

Mas não acredito. Nápoles não só não esquece como sente rancor. ‘Gomorra’ arrancou a tampa que fechava tantos silêncios. Não me perdoarão nunca. Dizem: ‘Você está ganhando dinheiro com a ‘monnezza’ (o lixo), hein?’, ou ‘pare de escrever porcaria, ‘buffone’.

Os guarda-costas se indignam mais do que eu, e tenho que dizer a eles que têm que me defender dos ataques físicos, não dos espirituais.

PERGUNTA - Orhan Pamuk deixou a Turquia.

SAVIANO - A Europa e o México são hoje os lugares onde os escritores correm mais risco. Mataram com um tiro na cabeça o autor [Georgi Stoev] de ‘BG Godfather’ [Chefão Búlgaro]. Também mataram Politkovskaia e a jornalista que retomou seu trabalho... Dá medo neles o autor que consegue fazer sua mensagem extrapolar seu território.

PERGUNTA - O sr. pensa muito em sua própria morte?

SAVIANO - Bastante. Me dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas.. Sei que me farão pagar -está escrito.

Convivo tanto com isso que já não me assusta mais. Quando chegarem, porque chegarão, será dentro de algum tempo. A tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles, seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo que é exagero, continuarão com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço.

Diziam isso a Falcone. E ele disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não se defendia das calúnias porque elas se defendem sozinhas, e que a máfia lhe faria um favor matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e que dizia a verdade..

PERGUNTA - Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra e a verdade, e são mais poderosas que as balas.

SAVIANO - Contar a verdade me ajudou a afastar as sombras que eu carregava por dentro e que se projetavam sobre mim. Eles venceram em parte, por me fazerem viver assim.

Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a Camorra. Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças.

A íntegra deste texto saiu no ‘El País’. Tradução de Clara Allain"



Isto é a Camorra

"Desde 1979, a Camorra comete em média um assassinato a cada 2,5 dias. Tem faturamento de bilhões de euros anuais, controla parte do tráfico de cocaína na Europa, domina o negócio da extorsão, da agiotagem, da coleta de lixo e do transporte de dejetos tóxicos.

Ela controla crianças de 11 anos, que atuam como sentinelas, abocanha grandes contratos públicos para os quais são feitas licitações na região da Campanha -onde fica Nápoles.

A Camorra também lava dinheiro no setor da construção civil da Espanha, compra políticos, faz prefeitos, administra direta ou indiretamente 40% do comércio de Nápoles, fabrica roupas no mercado negro para grandes empresas, dirige a importação e distribuição de mercadorias falsificadas vindas da China e domina o porto da cidade."



Isto é ‘Gomorra’

"O livro ‘Gomorra’, publicado na Itália pela editora Mondadori, vendeu mais de 2 milhões de exemplares em seu país e foi traduzido para mais de 30 línguas. Lançado no Brasil no final do ano passado pela Bertrand Brasil (trad. Elaine Niccolai, 350 págs., R$ 39), já vendeu no país 37 mil exemplares.

A adaptação cinematográfica, dirigida por Matteo Garrone, recebeu o Grande Prêmio em Cannes em 2008 e foi vista por 65 mil pessoas nos cinemas brasileiros. Está disponível nas locadoras (Paris Filmes)."