Miguel Mora
Folha de S. Paulo, 6 de abril de 2009
"Não sei se estou meio morto ou meio vivo. O que sei é que a ameaça dos Casaleses [clã mafioso] me converteu em uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais egoísta. Sinto ódio dos amigos que me abandonaram quando o livro saiu, entre uma partida de Playstation e uma da Liga Fantástica. Apenas saio de casa. Não posso usar cartão de crédito. Vivo sob escolta 24 horas por dia. Deixei de ser um homem -virei uma equipe. Os rapazes são ótimos, são napolitanos como eu. Praticamos esportes juntos, lutamos boxe no ginásio... Mas sinto falta de Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem na estação... O tempo se deformou, os minutos são estranhos, cada movimento banal requer um dia inteiro. E não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar, comprar uma geladeira. Ontem fomos ao supermercado, e foi patético. Os ‘carabinieri’ [policiais militares] em torno do carrinho, todos opinando sobre a pasta que eu devia comprar. As pessoas se assustaram; nos abriram um espaço no caixa para que fôssemos embora logo. Quando saímos, eu disse aos rapazes: ‘Não vamos voltar’.’
Assim é a vida de Roberto Saviano. Uma vida que não é vida, uma vida-morte, uma espécie de morte em vida.
O sucesso de ‘Gomorra’ [ed. Bertrand Brasil], um dos maiores fenômenos da história italiana, converteu-se numa maldição para seu autor.
Reconhecimento, prêmios e elogios, fama, dinheiro e viagens, nada disso compensa o outro lado da moeda: Saviano foi difamado, cuspido e insultado pelos jovens de sua própria terra, abandonado por seus amigos, condenado à morte.
E hoje vive agachado, rodeado de armas e de policiais, em alta velocidade e à meia-voz.
O Sistema
Tem apenas 29 anos, mas percebe-se que já não é mais aquele rapaz que gostava de contar piadas e que ia conquistar o mundo quando formou-se em filosofia pela Universidade Federico 2º, em Nápoles.
Foi naquela época que Saviano começou a escrever seu primeiro relato real, intitulado ‘La Terra Padre’ [A Terra Pai]. Naturalmente, o tema era a Camorra.
Conforme descrita por Saviano, a máfia napolitana, ou, melhor, da região da Campanha, deixou de ser o que era aos olhos de muitas pessoas -um grupo de bandidos dirigidos por tipos mais ou menos honrados que traficam e assassinam, mas que, no fundo, protegem uma população abandonada à própria sorte (embora esta última parte continue sendo verdade).
Ela passou a ser O Sistema, uma poderosa holding criminal que, de acordo com o último censo feito pelo chefe dos ‘carabinieri’ de Nápoles, o general Gaetano Maruccia [leia entrevista na pág. 6], responsável pela segurança de Saviano, ‘tem pelo menos 80 clãs e mais de 3.000 filiados armados, aos quais se soma uma extensa rede de colaboradores’.
Quando Saviano começou a escrever, era um jovem feliz, embora trabalhasse sem parar.
‘Eu tinha quatro ou cinco trabalhos: numa pizzaria, dando aulas de reforço para crianças à tarde, como pedreiro ocasional no campo de Caserta, bolsista de doutorado em história contemporânea e colaborador de periódicos e sites.’
Levou apenas alguns meses para juntar os 11 relatos verídicos que formam ‘Gomorra’.
Pouco depois, o manuscrito se converteu em livro, graças ao faro dos editores da Mondadori. ‘Publicaram meu primeiro relato na revista ‘Nuovi Argumenti’ (em abril de 2005), e depois fecharam comigo um contrato de promessa jovem. Me deram 5.000 de adiantamento por 5.000 cópias’, recorda Saviano.
Logo depois esse contrato deu lugar a outro, com valores estelares. ‘Em maio de 2006, quando o livro finalmente saiu nas livrarias, eu era o cara mais feliz do mundo. Vivi os cinco melhores meses de minha vida. Eu era um homem livre. Ganhei o Prêmio Viareggio, comecei a escrever no ‘La Repubblica’ e no ‘Espresso’, a falar na televisão... E, de repente, tudo parou. Tudo o que aconteceu desde então eu não vivi.’
Chegaram as primeiras ameaças dos Casaleses, o clã do povoado onde Saviano cresceu, Casal di Principe. E eram inequívocas. Ele teria que morrer. Não apenas sabia demais e tinha contado o que sabia, dando nomes e sobrenomes, relacionando cada informação com sua fonte, como também, e sobretudo, o livro havia chegado a pessoas demais.
A Camorra estava na boca de todos. Já não era o tradicional mal menor napolitano (fisiológico, à margem da lei). Era um câncer internacional.
Os juízes antimáfia levaram a advertência a sério. Era preciso protegê-lo, e rápido. No dia 13 de outubro de 2006, o ministro do Interior, Giuliano Amato, decidiu que Saviano deveria viver escoltado.
‘Lembro-me do dia em que os policiais militares vieram me buscar em casa para me levar ao quartel. Os vizinhos brincavam: ‘Robbè, finalmente estão prendendo você!’. Amato foi de uma sensibilidade extraordinária. Disse que o Estado tinha que me proteger, porque por mim defendia a liberdade de expressão, um princípio constitucional. Isso me converteu em símbolo da liberdade de expressão. Sempre o agradecerei por isso.’
Dois anos e quatro meses se passaram. Seus velhos amigos se afastaram dele. Sua antiga namorada o deixou. Sua família se dispersou ainda mais do que já estava dispersa (seus pais se separaram em pouco tempo).
E Saviano se culpa por tudo isso. Diz que lamenta por ‘ter destruído meu mundo por um livro e ter feito mal a todos os que me queriam bem’.
Sua vida está ‘suspensa, cancelada, detida’. É um destino quase irreversível.
Por questões de segurança, foram necessárias semanas para marcar o encontro para esta entrevista. A primeira tentativa foi adiada porque os níveis de alerta dispararam.
Um primo de Sandokan [líder mafioso] chamado Carmine Schiavone e colaborador com a Justiça (um ‘pentito’, ou arrependido), revelou que a Camorra tinha plano e data marcada. Iam matar Saviano antes do fim do ano, colocando uma bomba no caminho que ele percorreria na rodovia A1, que liga Roma a Nápoles.
Mas o nível de alerta diminuiu. Schiavone -que, mais do que um arrependido, parece ser o porta-voz da Camorra- declarou que seus ex-comparsas tinham decidido esperar que os holofotes fossem um pouco apagados antes de matá-lo. Com mais calma.
Finalmente pudemos marcar o encontro.
‘Vão acabar comigo’
Com a ajuda de sua amabilíssima assistente, Manuela, programamos ir juntos a Nápoles, fazer uma refeição com Saviano e conhecer seu amigo, o general Maruccia, chefe do Comando Provincial dos Carabinieri de Nápoles.
É 16 de janeiro, a manhã é bela e gelada, e os dois carros blindados chegam pontuais e muito juntos, deslizando com elegância italiana.
Saviano está sentado no primeiro carro, no banco de trás, à direita. As sirenes deixam de tocar, e os carros param. Cinco policiais descem e vasculham a rua com seus óculos escuros e seus ‘walkie-talkies’. Saviano continua sentado dentro do Lancia cinza.
Nos cumprimentamos e o fotógrafo começa a fazer imagens. Os guardas permanecem impassíveis. Estão acostumados. A esta altura, já foram fotografados 2.000 vezes e sabem que a Camorra conhece seus rostos milimetricamente. Mesmo assim, suas expressões não traem medo algum.
Saviano faz um apanhado do armamento: os Casaleses têm cem quilos de TNT e um arsenal de metralhadoras e pistolas. ‘Sei que vão acabar comigo. Cedo ou tarde, vão fazê-lo.’"
O homem blindado
Leia a seguir entrevista com Roberto Saviano.
PERGUNTA - Quer dizer que é assim sua vida atual?
ROBERTO SAVIANO - É assim. Eles vão aos lugares antes de mim. Chegam primeiro, controlam tudo, e depois eu vou. Para qualquer coisa. Se é preciso comprar uma geladeira, por exemplo, eles vão na frente, depois eu vou, a olho, escolho o modelo, e então vamos a outra loja diferente para comprá-la. Nunca voltamos ao mesmo lugar.
PERGUNTA - O sr. sempre teve cinco guardas?
SAVIANO - Comecei com dois, depois passaram a ser cinco.
PERGUNTA - O sr. muda muito de casa?
SAVIANO - Sempre que observamos algum detalhe diferente. Por exemplo, se há uma obra em andamento num edifício próximo e sabemos que há pessoas de Nápoles trabalhando ali que já foram julgadas, eles me mudam de casa. Basta algo assim.
PERGUNTA - Eles o escoltam também dentro de casa?
SAVIANO - Não, normalmente não entram em casa. Esperam atrás da porta. Vinte e quatro horas por dia.
PERGUNTA - Parecem tranquilos.
SAVIANO - Têm muitos anos de experiência no combate à máfia. Já protegeram personalidades, juízes e ‘supertestemunhas’. Maruccia os escolheu.
PERGUNTA - Com tanto contato, vocês já devem ter virado amigos.
SAVIANO - Claro, são magníficos. E isso me obriga a seguir adiante, a não desistir. Devo isso a eles, que me defendem.
PERGUNTA - O sr. encontra amigos em casa?
SAVIANO - Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi muito doloroso entender isso. É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem ninguém parece estar à altura trágica de sua situação...
PERGUNTA - A normalidade se torna absurda.
SAVIANO - Sim, as propostas das pessoas normais, falar de coisas bobas, sair para tomar uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado num turbilhão no qual existia apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas nos livros. Fiz uma espécie de descida aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em situações mais graves, conseguiu sobreviver.
PERGUNTA - E quais autores o ajudaram?
SAVIANO - Os perseguidos pelos soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960], Varlam Shalamov [1907-82].... e, mais recentemente, Anna Politkovskaia [1958-2006], que acabou de forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.
PERGUNTA - E, tantas vezes, com a cumplicidade do governo.
SAVIANO - Sim. Estou convencido de que, na Itália, quando se luta contra determinados poderes, o destino das pessoas está selado. Não necessariamente de forma trágica, embora muitas vezes seja assim.
PERGUNTA - Deixando o sr. fora do circuito?
SAVIANO - Eles o caluniam, dizem que você está se exibindo, que está procurando publicidade. É isso que é incrível, porque se cria um círculo vicioso que impede que você tenha a palavra. E o que as máfias temem é justamente isso: a atenção.
PERGUNTA - Quando o sr. escreveu o livro, imaginou que aconteceria algo assim?
SAVIANO - Eu era um sujeito jovem que lia, discutia e escrevia.. De repente me vi no meio desta guerra. Pensava que teria problemas, mas não tão graves. Agora não posso pôr os pés em Nápoles. Esta viagem é a primeira que faço em um mês. Todas as cidades me convidam, menos a minha. Apesar de ‘Gomorra’ ser o livro mais vendido da história da cidade.
PERGUNTA - Soa irônico, é verdade.
SAVIANO - Restam poucos focos de resistência ali, poucas forças sadias. Uma delas é Marotta, o filósofo; outra, o cardeal Sepe. E o bispo Raffaele Nogaro, em Caserta, que leva adiante o trabalho do dom Peppino Diana, o padre de Casal di Principe que foi assassinado. É curioso que as instituições religiosas façam o trabalho do Estado. Esse é o drama do sul da Itália.
PERGUNTA - A crise econômica vai agravar a situação?
SAVIANO - Com certeza. E isso vai permitir ao dinheiro do crime entrar em todo lugar. [Devemos estar por volta do quilômetro 80. Faltam 150 para Nápoles. Não há muito tráfego na estrada e o automóvel voa, como os dos videogames. Os que andam pela esquerda nos acompanham em alta velocidade. ‘Vamos levar pouco mais de uma hora’, informa Saviano. ‘Se os ‘carabinieri’ nos pararem, vamos sorrir.’ É a primeira piada da viagem.] [Parece estar de humor melhor do que estava alguns meses atrás, quando disse que deixaria o país. Mas, à medida que nos aproximamos de Nápoles, vai ficando mais tenso]
PERGUNTA - Na realidade, o sr. vive uma espécie de vida virtual. Como um super-herói ao avesso.
SAVIANO - Uma vida virtual e blindada. As pessoas me visitam como se eu fosse um doente, me trazem água e açúcar, como dizemos na Itália. O que me dá satisfação são coisas virtuais, como o Facebook -recebo milhares de mensagens de jovens. Isso é precioso. Neste país ainda há pessoas que têm vontade de se expressar.
PERGUNTA - O sr. sente mais esse apoio que o da classe intelectual?
SAVIANO - O papel do escritor mudou de repente, e alguns se sentiram assediados. Muitas pessoas exigem que os escritores se pronunciem. Antes achavam que os livros não podiam mudar as coisas; hoje já não se pode afirmar isso. Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas. O poder enorme que tem o leitor que escolhe ler um livro... Talvez ele não se dê conta disso. Eu, sim. Os leitores, e não o livro, são a chave de minha história. Se ninguém tivesse lido meu livro, a Camorra teria se importado muito menos com ele.
PERGUNTA - A jornalista do ‘Il Mattino’ Rosaria Capacchione, autora de ‘L’Oro della Camorra’ [O Ouro da Camorra], também vive sob escolta.
SAVIANO - Sim, é um caso parecido com o meu. A diferença é que ela ainda vive e trabalha em Nápoles. Consideram-me um palhaço porque escrevo fora da cidade. Já ela é respeitada.
PERGUNTA - [O jogador de futebol] Cannavaro já disse que essas coisas da máfia é melhor não espalhar...
SAVIANO - A máfia faz todo mundo sentir-se culpado. Alguns se sentem culpados porque sabem pouco, outros, porque pensam muito. Cannavaro se equivoca em uma coisa.. Não é um problema local, é global: eles investem em todo lugar.
PERGUNTA - Muitos napolitanos pensam como ele.
SAVIANO - Sim, um dia um advogado gritou para mim: ‘Sou eu quem paga sua escolta!’. E os vizinhos de um apartamento que tive se organizaram e pagaram vários meses de meu aluguel adiantados, para não me terem ali.
[Nápoles aparece no horizonte, grande e belíssima. ‘Você vê Nápoles e depois morre’, reza o ditado. Uma frase que não parece oportuno citar quando o carro estaciona no quartel da polícia. Por sorte a pizzaria fica perto dali, na rua de Toledo.]
[Os livros são a grande paixão de Saviano, desde pequeno. Seu rosto só se ilumina quando fala de literatura e quando chega a pizza fumegante, verdadeiramente napolitana: mussarela de búfala, tomates cereja, crocante e macia.]
[Saviano a corta em triângulos e sopra por cima, fazendo círculos, como um menino. Então conta que tirou de ‘Soldados de Salamina’, de Javier Cercas, a inspiração para escrever seu ‘relato real’. E que gostaria de encontrar Mario Vargas Llosa.] É um escritor fabuloso, e, como Cervantes, conhece a alma napolitana. Eu o escolheria como padrinho de meu retorno público.
Seria maravilhoso se Marotta organizasse sua vinda aqui no Instituto, porque foi essa grande tradição laica e civil de Nápoles que me ajudou a escrever o livro. Os mestres dos revolucionários franceses eram napolitanos. Aqui nasceram as ideias de liberdade na Europa.
E não foi por acaso que Giordano Bruno morreu na fogueira, e sim porque tentou retornar a Nápoles. Tinha a hospitalidade do mundo inteiro, mas preferiu voltar. Foi detido em Veneza e o queimaram.
Alguns me dizem: ‘Fale da grande cultura, e não da vida ruim’. Caravaggio é a beleza, e essa beleza me dá forças para relatar o mal. Se não existisse essa beleza, não haveria esperança de sair. Mas, se usamos a beleza para encobrir o mal, ela se converte em disfarce.
Estive com Salman Rushdie em Nova York. Cheguei com a escolta, ele se aproximou com Ian McEwan, cada um me pegou por um braço e eles me levaram ao carro. Eu mal conseguia acreditar.
Salman me disse o que eu sinto. Que muitas pessoas pensam que, para um escritor, viver ameaçado é algo glamouroso. Que ninguém vai me entender, exceto algum político (ele diz que apenas Margaret Thatcher o entendia). Que ninguém vai acreditar que o que você mais deseja é tomar um café num bar. Que a única forma de reconquistar sua liberdade é decidir fazê-lo. Que o importante é manter sua cabeça livre e saber quando você quer voltar a ser livre. Que eu devo procurar um bom exílio...
Mas isso é algo que preciso pensar bem, porque começar do zero é difícil.
[Estamos de volta a Roma. Saviano escapuliu na metade da tarde de sexta-feira para passar o fim de semana com sua ‘mamma’ (versão oficial) e hoje ficamos na sede de sua editora, a Mondadori. Finalmente, a boa notícia: Saviano está escrevendo outra vez. Tem dois projetos em andamento. Um é um relato verídico sobre o crime organizado internacional. O outro falará dele próprio, do homem solitário. Será quase uma vendeta.]
[‘Tenho que canalizar de alguma maneira o rancor que sinto pelos amigos que me abandonaram quando escrevi ‘Gomorra’. Sinto ódio por eles. Entendo que a vendeta não é uma arte nobre, mas me deixaram no chão quando eu mais precisava deles. E a amizade é o contrário disso, não?’]
PERGUNTA - Com sua família as coisas vão melhor?
SAVIANO - Quando meus pais se separaram, meu irmão e eu ficamos com nossa mãe, que é química e vivia viajando a congressos. Estudamos num colégio de Caserta. Víamos meu pai, que é o médico da cidade, nos finais de semana.
Arruinei a vida de todos que me eram próximos. Meu irmão foi trabalhar no norte. E não tenho relações com meu pai.
PERGUNTA - Dizem que tudo vem da infância. O que o sr. se recorda da Camorra daquela época?
SAVIANO - Meu pai me levava para visitar doentes nos povoados rurais de Caserta. Muitas vezes víamos cenas apocalípticas. Eu me lembro das búfalas mortas boiando no rio Volturno. Quando ficavam velhas, jogavam-nas na água, para economizar balas..
Lembro que pescávamos percas marinhas no rio, porque, de tanto a Camorra roubar a areia do rio para fazer cimento, em vez de o rio desembocar no mar, a água salgada penetrava em seu leito.
Meu pai sempre teve medo da Camorra, mas nunca se rebelou. Via os carros luxuosos deles e sentia raiva. Mas não dizia nada, nunca.
Sempre senti essa asfixia. Tudo ia mal, mas ninguém podia fazer nada. Sempre foi assim. ‘Se você é ‘furbo’ (malandro), pode aproveitar’, diziam. Se você pensa que pode mudar alguma coisa, é um louco.
A Camorra sabe que só tem problemas quando mata demais. Ela ajuda as famílias com filhos deficientes.
PERGUNTA - Quer dizer que não é apenas um Estado, mas um Estado de Bem-Estar Social.
SAVIANO - Mas o bem-estar social da Camorra não é um direito, é um privilégio. Eles podem tirá-lo de você.
PERGUNTA - Quando decidiu ser escritor?
SAVIANO - Aos 14 ou 15 anos. Eu sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue -você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.
A cultura é o que realmente salva nossa vida; minha terra me deu isso de presente. A ‘Anábasis’ de Xenofonte se parece comigo.
Para escrevê-la, ele se tornou mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia: ‘Não confia em quem escreve sobre coisas não vividas’.
PERGUNTA - Mas, para o sr., esse livro apenas estragou sua vida.
SAVIANO - Agora vivo encerrado em ambientes fechados; ando de um cômodo a outro, às vezes dou socos nas paredes. É uma meia morte, ou uma meia vida.
PERGUNTA - Ela acabará um dia...
SAVIANO - Quem sabe minha libertação chegue e eu possa passear novamente na praça do Plebiscito quando eu for velho, ou usando uma peruca loira.
Mas não acredito. Nápoles não só não esquece como sente rancor. ‘Gomorra’ arrancou a tampa que fechava tantos silêncios. Não me perdoarão nunca. Dizem: ‘Você está ganhando dinheiro com a ‘monnezza’ (o lixo), hein?’, ou ‘pare de escrever porcaria, ‘buffone’.
Os guarda-costas se indignam mais do que eu, e tenho que dizer a eles que têm que me defender dos ataques físicos, não dos espirituais.
PERGUNTA - Orhan Pamuk deixou a Turquia.
SAVIANO - A Europa e o México são hoje os lugares onde os escritores correm mais risco. Mataram com um tiro na cabeça o autor [Georgi Stoev] de ‘BG Godfather’ [Chefão Búlgaro]. Também mataram Politkovskaia e a jornalista que retomou seu trabalho... Dá medo neles o autor que consegue fazer sua mensagem extrapolar seu território.
PERGUNTA - O sr. pensa muito em sua própria morte?
SAVIANO - Bastante. Me dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas.. Sei que me farão pagar -está escrito.
Convivo tanto com isso que já não me assusta mais. Quando chegarem, porque chegarão, será dentro de algum tempo. A tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles, seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo que é exagero, continuarão com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço.
Diziam isso a Falcone. E ele disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não se defendia das calúnias porque elas se defendem sozinhas, e que a máfia lhe faria um favor matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e que dizia a verdade..
PERGUNTA - Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra e a verdade, e são mais poderosas que as balas.
SAVIANO - Contar a verdade me ajudou a afastar as sombras que eu carregava por dentro e que se projetavam sobre mim. Eles venceram em parte, por me fazerem viver assim.
Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a Camorra. Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças.
A íntegra deste texto saiu no ‘El País’. Tradução de Clara Allain"
Isto é a Camorra
"Desde 1979, a Camorra comete em média um assassinato a cada 2,5 dias. Tem faturamento de bilhões de euros anuais, controla parte do tráfico de cocaína na Europa, domina o negócio da extorsão, da agiotagem, da coleta de lixo e do transporte de dejetos tóxicos.
Ela controla crianças de 11 anos, que atuam como sentinelas, abocanha grandes contratos públicos para os quais são feitas licitações na região da Campanha -onde fica Nápoles.
A Camorra também lava dinheiro no setor da construção civil da Espanha, compra políticos, faz prefeitos, administra direta ou indiretamente 40% do comércio de Nápoles, fabrica roupas no mercado negro para grandes empresas, dirige a importação e distribuição de mercadorias falsificadas vindas da China e domina o porto da cidade."
Isto é ‘Gomorra’
"O livro ‘Gomorra’, publicado na Itália pela editora Mondadori, vendeu mais de 2 milhões de exemplares em seu país e foi traduzido para mais de 30 línguas. Lançado no Brasil no final do ano passado pela Bertrand Brasil (trad. Elaine Niccolai, 350 págs., R$ 39), já vendeu no país 37 mil exemplares.
A adaptação cinematográfica, dirigida por Matteo Garrone, recebeu o Grande Prêmio em Cannes em 2008 e foi vista por 65 mil pessoas nos cinemas brasileiros. Está disponível nas locadoras (Paris Filmes)."